Intervenção do


Dr. António Almeida Santos,
Presidente da
Assembleia da República Portuguesa
.


Meus Senhores, declaro abertos os trabalhos desta Audição Parlamentar. Queria dar-vos as boas vindas na qualidade de Presidente da Assembleia da República, dizer-vos que tenho muita honra e muita satisfação em estar aqui a presidir à abertura dos trabalhos. Pedirei depois ao Senhor Vice-Presidente, Mota Amaral, o favor de me substituir quando tiver que ausentar-me e começo por vos endereçar uma calorosa saudação.

Muito obrigado a todos.

E de seguida dou a palavra a mim próprio, não vejo outra maneira de usar dela e vou passar a ler um texto que redigi, um pouco à pressa, mas que é um texto que quero que fique a responsabilizar-me pelo que de útil e inútil nele digo.

Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República, Dr. Mota Amaral,
Senhor Presidente da Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias,
Senhora Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados,
Senhor Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas,
Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados,
Senhores Participantes,
Senhores Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,


Como já disse, quero saudar-vos e agradecer a vossa presença e o vosso empenhamento nesta reunião de trabalho, em forma de Audição Parlamentar, sobre um tema tão candente, tão antigo e tão actual como é a situação dos refugiados no nosso país.

Impõe-se assinalar, antes de mais, que a solidariedade que o nosso País dispensou nas duas últimas décadas, e vier a dispensar no futuro, aos que bateram ou que vierem a bater à nossa porta em petição de asilo, além de constituir um dever de solidariedade universal, representa a amortização de uma dívida.

Senhores, somos um país de atracção para os que vagueiam pelo Mundo em busca de uma Pátria que não têm, ou de um País sucedâneo da própria Pátria que os humilha, os violenta e os expulsa, fomos no meio século que precedeu Abril de 1974 um país de repulsão dos seus próprios filhos.

Portugueses ilustres que atingiram os pontos mais altos da hierarquia política ou universitária - como Bernardino Machado e Afonso Costa - ou mais modernamente Humberto Delgado e Mário Soares, para só citar os exemplos mais frisantes, foram compelidos a solicitar acolhimento no exterior, acossados pelo risco da perda da própria da liberdade, quando não da própria vida, como aconteceu infelizmente ao o General Humberto Delgado.

Centenas de resistentes portugueses encontraram no Brasil, na França e noutros países a generosidade e o respeito pelos mais universais direitos que não encontraram no seu. Poderíamos nós, recuperada a própria liberdade, enquanto Povo, recusar acolhimento aos que em busca dela cruzavam as nossas fronteiras?

É claro que não. Mas o facto de a Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados terem tomado a iniciativa conjunta desta Audição Parlamentar, inspirados pelas preocupações que a justificam, basta para nos dar conta de que não teremos ido tão longe quanto era nosso dever que fossemos.

É mister que passemos a ir. Que nos debrucemos sobre o défice existente, sobre as razões desse défice, e que, sempre que entre essas razões não esteja a necessidade de salvaguardar interesses e valores colidentes com a concessão do asilo, tanto ou mais imperiosos e salvaguardáveis, o asilo seja efectivamente concedido a quem se revele em estado de necessidade dele.

É que o asilo, depois de por longo tempo - que se perde nos confins da memória - ter sido configurado como um dever ético, tornou-se, em plena floração dos direitos de validade universal, um dever jurídico.

Tomemos clara consciência de que não é mais uma faculdade, ínsita entre outras na disponibilidade soberana dos Estados, mas que, para os que assumiram os direitos fundamentais como direito seu, é hoje um desses direitos.

Di-lo, ainda que de forma cautelar, o Art. 14º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Assim:

Reconhecendo embora a extrema prudência na escolha dos vocábulos - a salvaguardar talvez uma certa margem de ambiguidade entre o dever e a faculdade de conceder o asilo, por parte do Estado para tanto solicitado - temos ainda assim de reconhecer que a Declaração Universal já não se contenta com o direito de procurar asilo, tendo avançado até ao direito a dele beneficiar.

Acresce que, mencionando o número 2, os casos em que este direito não pode ser invocado, o faço seguramente para significar que, fora desses casos, o direito de asilo pode sê-lo. Para além de que, se podem invocar direitos, não se invocam simples expectativas.

Causa alguma perplexidade o facto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - apesar de muito posterior à Declaração Universal - não reproduzir autonomamente a afirmação do Direito de Asilo.

Ainda assim, ao reconhecer a toda a pessoa os direitos cuja violação pode justificar o Direito de Asilo, implicitamente acolhe este direito.

É mais enfática, e vai mais longe, a nossa própria Constituição.

Desde logo a juntar, num mesmo dispositivo, os casos de proibição da extradição, os condicionalismos da expulsão -ou sejam as garantias de não expulsão - e a garantia do Direito de Asilo.

Diz o número 6 do Art. 33º da Constituição da República, "É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana".

Verificados estes condicionalismos, a garantia funciona.

Anote-se que esta não é uma garantia qualquer, antes uma garantia que goza da protecção que a Constituição dispensa aos chamados "direitos, liberdades e garantias", assegurando-lhes aplicabilidade directa, poder vinculante em relação a todas as entidades públicas e privadas, a excepcionalidade e a não retroactividade da sua restrição por lei e - "super omnia" - o reforço garantístico de que as leis restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito de que se trate.

Este condicionalismo reveste-se do maior significado. O de que, sempre que um peticionário de asilo se encontre em condições de invocar o correspondente direito, o asilo só pode ser-lhe negado se se revelar necessário salvaguardar "outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos".

Isto é: em caso de conflito de direitos ou interesses, com prevalência, como é óbvio, do direito de maior dignidade constitucional.

Mas, como vimos, a Constituição Portuguesa por um lado vai além e por outro fica aquém do texto da Declaração Universal.

Vai além quando faz equivaler a uma perseguição efectiva, a simples ameaça dela. Fica aquém quando se não contenta com uma perseguição qualquer, antes exige que a perseguição de que se trate tenha o que poderemos chamar uma motivação política. Para poder justificar o asilo tem de ser a consequência de actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.

O asilo surge assim como prémio de actividades politicamente nobres. Fora desta panópia de motivos, será a perseguição irrelevante?

Não creio que deva sê-lo. O enunciado das causas de perseguição constante da citada disposição constitucional não pode ter-se por avaramente taxativo. Não são difíceis de configurar outras actividades que, não cabendo na moldura dos motivos enunciados, são igualmente nobres e a igual título justificativas da garantia do asilo. Os próprios conceitos utilizados são de per si tão compreensivos que debalde se procura uma actividade política, jurídica ou eticamente nobre não enquadrável nas fronteiras do seu significado.

Assim o entendeu, aliás, o legislador ordinário, que viria a incluir, factos, e não apenas actividades, e receios de perseguição, e não apenas ameaças dela, entre as causas justificativas do direito de asilo.

Assim reza, com efeito, o número 2 do Art. 2º da Lei nº 70/93, de 29 de Setembro:

"Têm ainda direito à concessão de asilo, os estrangeiros e os apátridas que, receando com razão serem perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, em virtude desse receio, não queiram, voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência oficial".

Para além da contradição implícita neste "direito à concessão", vê-se assim que o direito de asilo vai fazendo o seu caminho, de condicionalismos mais rígidos para menos rígidos.

Mas, se assim é, porque se tem a sensação - implícita na motivação desta Audição Parlamentar - de que, ao invés, a flexibilização do exercício do Direito de Asilo, em vez de avançar recua?

Parece inegável que, no espaço europeu, faz caminho uma certa tendência para se restringir o acesso ao asilo.

Que explicação pode isso ter?

Creio eu que ela se há-de encontrar nas seguintes causas determinantes:

Qualquer semelhança entre o Mundo que de tudo isto sai e o Mundo que antes de tudo isto foi, é mera coincidência. Podiam o instituto e a prática do asilo saírem incólumes deste terramoto civilizacional?

É claro que não!

Vejamos o caso português. Integrámo-nos, há uma década, no espaço económico e político da União Europeia. Aderimos ao salto dado para o projecto de um Mercado Único. De um espaço sem fronteiras físicas ou económicas, ordenado segundo um conjunto de liberdades de circulação: de pessoas, mercadorias e de capitais.

No espaço europeu, o passaporte e o visto são relíquias do passado. Pessoa perseguida ou ameaçada de perseguição no seu país de origem ou de residência, que penetre no espaço da União Europeia, tem à sua escolha um de quinze países a que pode solicitar asilo. Qual deles tem a obrigação de conceder-lho?

Consciente da nova situação criada, engendrou-se o Acordo de Schengen - a que só sete Estados Membros aderiram até agora - no qual se adoptaram algumas regras das muitas que provavelmente são necessárias para evitar que cada um deles se converta num imenso "passador" de perseguidos ou apenas descontentes. Desde logo, a regra conducente à definição de a qual dos quinze cabe a responsabilidade de conceder o asilo.

Se a isto somarmos o facto de em 1990 terem sido 75, e três anos depois 2090, os pedidos de asilo; de com este período ter coincidido um aumento preocupante da criminalidade; e de sintomas de racismo e xenofobia terem feito a sua aparição no espaço português - aumento e sintomas de tentadora relacionação com surtos de estrangeiros entrados - é talvez fácil a explicação do diminuto número de pedidos de asilo que, no mesmo período, foram satisfeitos, ou sejam, 4 em 1990; 25 em 1991; 17 em 1992; 75 em 1993.

A ajuizar por estes números, uma de duas conclusões são extractáveis: ou a generosidade foi pouca ou não foi muita a justificação dos pedidos de asilo.

Teve-se, não poucas vezes, a impressão de que as petições de asilo disfarçavam mal pedidos de residência para efeitos de ulterior procura de emprego. Mas, em muitos outros casos, não se fugiu à convicção de que as nossas autoridades foram mais avaras do que se justificava que fossem, na sequência de uma opção política de imigração restritiva.

Esta opção era - e continua talvez a ser - tentadora. A razão é simples: era e continua a ser popular. Num País onde o desemprego não pára de crescer, com tendência para converter os postos de trabalho num bem raro e dificilmente partilhável; com uma opinião pública que frequentemente relaciona o aumento da criminalidade e da insegurança social com as minorias étnicas que entre nós se radicaram, o mais das vezes sem verdadeira integração social, restringir o asilo ter-se-á convertido numa tentação irresistível.

Daí a concreta configuração de algumas das alterações introduzidas pela Lei 70/93, em vigor, que coincidiu com o pico mais alto da procura do asilo.

Mas logo em 1994 o número de pedidos baixou para menos de metade (767) sendo que em 1995 voltou a baixar para menos de um quarto (457). Existem decerto boas razões para voltarmos a reflectir sobre a talvez reacção de pânico que esteve na base das tão polémicas alterações introduzidas no sistema.

É para isso que aqui estamos. O problema está nas vossas, logo em boas mãos.

O mais provável, no entanto, é que estejam criadas condições para um irresistível jogo de tracção entre as pulsões favoráveis à dilatação do asilo como expressão de solidariedade universal, num Mundo em que campeia o egoísmo, e favoráveis à sua compressão como resposta à preocupações que com razão ou sem ela a ele se ligam. Dito de outro modo: entre o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a quem as Nações Unidas cometeram a protecção de quem procura refúgio - e que é hoje um expoente de generosidade e solicitude humana, que eu quero saudar na pessoa da sua ilustre Representante aqui presente - e um cada vez mais numeroso grupo de Estados que debalde tentam regressar ao estatuto de fortaleza inexpugnável, que já pertence ao passado.

Há que conciliar estas duas preocupações e estes dois valores. Nem trancas à porta, fechando o coração aos sentimentos humanitários que enobrecem o instituto do asilo, nem total livre trânsito, como se a utopia da aldeia global estivesse já aí, protegida pelos novos equilíbrios e a nova ordem mundial que constituem o maior e mais difícil desafio dos responsáveis políticos de hoje.

O que se faz mister é repensar o instituto à luz dos novos condicionalismos e das novas preocupações.

A Convenção de Genebra tem a bonita idade de 45 anos. Só por milagre se manteria compaginada com a situação internacional de quase meio século depois. Precisamos de novos instrumentos de concepção e de acção. Precisamos, sobretudo, de um novo denominador comum de direito internacional que sirva de orientação e apoio às legislações nacionais.

A União Europeia já, para si mesma, definiu a necessidade de uma política comum de asilo no quadro da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos instituída pelo Tratado de Maastricht. (Artigo K.1.)

Uma coisa é certa: se há hoje dificuldades acrescidas, há também exigências reforçadas. Os direitos humanos criam hoje à consciência universal imperativos éticos que nem sempre existiram. E faz cada vez menos sentido reconhecer a todas as pessoas aqueles direitos, com crescente validade universal, e contribuir depois para a sua violação recusando abrigo aos que fogem ou tentam fugir dessa violação.

Não me deterei sobre as sugestões contidas no documento de trabalho que vai constituir o ponto de partida das vossas elocubrações.

Contém, seguramente, contributos válidos e imaginosos, que reclamam a vossa atenção reflexiva. A virtude de que são portadores dependerá, uma vez mais, do ângulo porque forem encarados. Mas não resisto a considerar que, entre a concessão e a denegação do asilo, como entre momento de invocá-lo e o último elo de execução da sua recusa, cabe toda uma gama de generosidades intermédias que, mesmo sem asilo, podem assegurar ao que invoca receios de perseguição uma saída para evitar a consumação deles. Entre a resistência a conceder o estatuto de refugiado sem limite de tempo, e a facultação de residência por um certo período, vai uma distância quase tão grande como entre o sim e o não. O que se faz mister é não negar solicitude mesmo àqueles a quem o asilo é negado.

Podem é razões do pedido serem simuladas? Sabemos que com frequência o são. Mas, sempre que não exista a certeza disso, é irrecusável um gesto de compreensão e solicitude. Que evite sofrimento a quem pede o asilo. E remorso a quem o nega.

E aí tendes, meus senhores, um bem modesto aperitivo para os vossos trabalhos.

Sede arrojados e criativos. Não vos deixeis vencer pela rotina dos obstáculos, das contradições e dos jogos de interesses que teimam em colocar barreiras no caminho da generosidade. Se começarmos por acolher no nosso coração os que precisam do nosso acolhimento e do nosso apoio, cedo ou tarde os acolherá no seu seio a lei que rege a Comunidade que somos.

Para além - é claro - da generosa protecção que já lhes dispensa.

Se algo tenho por certo é que a Constituição e a Lei que nos regem, pouco mais precisam do que de uma nova leitura.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Eu pedia ao Senhor Vice-Presidente o favor de me substituir na presidência da mesa e agradeço a todos a paciência com que me escutaram, desejo-vos uma vez mais bom trabalho e sobretudo bons resultados .

Muito obrigado.