Sugestões relativas à Proposta de Lei nº 97/VII sobre Direito de Asilo
 
pelo GDDC - PGR1
 
1. O regime do asilo conhece um processo-regra com dois regimes: uma fase de admissibilidade do pedido e uma fase de apreciação do mérito do pedido, que é jurisdicionalizada. Na proposta de lei em apreciação dá-se, relativamente à primeira fase um primeiro passo no sentido da introdução do pedido diante dos tribunais. Aí se prevê, com efeito, a possibilidade de recurso de decisão negativa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, após reapreciação do Conselho Nacional para os Refugiados, diante do Tribunal Administrativo de Círculo.

E esta concepção da fase inicial pode merecer, porém, alguns reparos, pois enquanto todo o procedimento parece estar orientado para o carácter suspensivo dos recursos, falta, entre outras questões que não parecem igualmente conduzir a uma melhor protecção dos Direitos Humanos, a suspensividade do recurso do acto de rejeição liminar do pedido pelo CNR, no artigo 16 da proposta.

Esta omissão da lei pode ter graves consequências, pois, interposto o recurso da decisão do Comissário Nacional para os Refugiados no Tribunal Administrativo de Círculo, o requerente de asilo pode ser expulso do País, uma vez que se sabe que o pedido de suspensão da eficácia do acto nos Tribunais raramente é satisfeito. Pode assim o requerente de asilo correr o perigo de expulsão no preciso momento em que introduz o seu recurso perante um órgão judicial, o que fragiliza a sua defesa.

2. E não se pode dizer que a expressão "expulsão imediata" contida no artigo 15º, ao dar aparente fundamento - por existência do grave prejuízo causado pelo acto administrativo - à suspensão da eficácia do acto de expulsão pelo Tribunal seja garantia suficiente de um processo equilibrado. É que continua a ser decisão livre do Tribunal a decisão sobre a suspensão da eficácia da expulsão. A proposta de lei preparada neste momento ainda não está em vigor, nem sofreu o teste da sua aplicação pelos tribunais. Por isso, é difícil saber, à partida, se a suspensão da eficácia da expulsão vai formar jurisprudência constante dos nossos tribunais administrativos. A garantia poderá não existir ou ser, pelo menos, do ponto de vista do requerente de asilo, insuficiente.

3. A redacção da proposta de lei pode, por outro lado, levantar, neste domínio, alguns problemas do ponto de vista do respeito pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem. A expulsão de um requerente sem decisão judicial que recaia sobre o seu pedido pode fazer-lhe correr sério risco de vida. A jurisprudência relativa à expulsão de cidadãos estrangeiros que se desenvolveu no domínio do artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é disso testemunho. Assim, em Vilvarajah e outros contra o Reino Unido (SA 215, 30.10.1991), a Comissão Europeia dos Direitos do Homem entendeu que, embora o direito de asilo não esteja previsto na Convenção ou nos seus Protocolos, a decisão de expulsão de um requerente de asilo pode levantar um problema sério à luz do artigo 3º da Convenção, se existirem fundamentos para acreditar que o requerente corre um risco sério de tortura ou de tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes com a concretização dessa decisão.

A mesma posição foi reafirmada noutros casos: em K. contra o Reino Unido (DR 52, pág. 75, 14.05.1987), em X c. RFA (DR 5, pág. 155, 9.03.1976, em Y e outros c. Suíça (DR 47, pág. 286, 9.05.1986), em Cemal Kemal Altun c. RFA (DR 36, pág. 236, 7.03.1984), em A. e F. B. K. c. Turquia (DR 68, pág. 194, 12. 01. 1991), em El Makhour c. RFA (DR 60, pág. 290, 8.03.1989) embora nem todos estes pedidos tenham sido admitidos pela Comissão.

4. Mas a Comissão vai mesmo mais longe. Afirma, com efeito, que se alguém se queixar que a medida de expulsão, decidida contra ele, é contrária ao artigo 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, um recurso sem efeito suspensivo não poderá ser considerado efectivo à luz da Convenção. Tal posição foi defendida, por exemplo, em C.c. Países Baixos (DR 38, pág. 227, 17.05.1984) e em V. e P. c. França (DR 70, pág. 299, 04.06.1991).

Ao não conceder a suspensão da eficácia da decisão de expulsão, acarretando esta eventualmente um perigo para a integridade do requerente de asilo, a nossa proposta poderá não respeitar a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, por força do artigo 16º . 1 da Constituição, que constitucionaliza a protecção internacional dos Direitos do Homem, a própria Constituição da República.

5. Outro domínio que poderá nos merecer alguns reparos é o regime dos pedidos apresentados nos postos de fronteira. Este regime parece quebrar a harmonia da lei, repartida entre a fase da apreciação liminar e a fase da apreciação do mérito dos pedidos de asilo.

A proposta estabelece com efeito, um conjunto de prazos rápidos para as várias partes intervenientes no processo de asilo darem o seu contributo, o que acaba na prática por representar um alargamento da permanência do requerente de asilo na zona internacional do porto ou aeroporto por um período superior a quarenta e oito horas.

Enquanto o comum requerente de asilo terá ao seu dispor prazos mais alargados, este requerente sofrerá prazos mais curtos, ao mesmo tempo que permanece numa verdadeira situação de detenção na zona internacional. Essa detenção ultrapassa, por outro lado, o prazo normal para a petição de habeas corpus poder produzir efeitos no processo penal interno, ou seja, quarenta e oito horas. Fica assim, duplamente penalizado na sua situação.

6. Pode, deste modo, questionar-se a razão da previsão deste regime de detenção. Se ele for ilegítimo, porque não deixar o requerente de asilo entrar no País e beneficiar do normal regime de prazos mais dilatados de todo o processo? Além da possibilidade de uma detenção injustificada e sem a chancela de uma decisão judicial2, poderá haver lugar a uma violação do princípio constitucional da igualdade uma vez que estes requerentes de asilo não beneficiam das mesmas garantias que os outros.

Reconhece-se, contudo, que há argumentos em sentido contrário. Aquele segundo o qual o requerente de asilo que permanece na zona internacional do aeroporto ou do porto não chegou ainda a entrar no País, no momento em que este lhe nega a sua entrada ou aprecia a possibilidade de concretização desta, nos termos de um processo acelerado conferente, pela sua celeridade, de maiores garantias ao requerente de asilo. Outro argumento, segundo o qual a permanência do requerente de asilo na zona internacional do aeroporto não é da responsabilidade do Estado português mas depende das companhias aéreas responsáveis pelo encaminhamento do requerente, de regresso, para o porto ou aeroporto de origem. Poder-se-á, porém, igualmente aduzir, a este propósito, que o Estado português poderá estar por esta via a eximir-se da responsabilidade por uma detenção sem habeas corpus sendo certo que é impossível controlar as razões económicas que determinam as companhias aéreas a reter as pessoas na zona internacional do aeroporto.

7. Esta situação é o espelho das dificuldades, de toda a ordem, dos tempos modernos. Mas nem por isso se julga de dar acolhimento a este regime dos pedidos apresentados nos postos de fronteira que do ponto de vista da protecção dos requerentes de asilo, parece insuficiente. Julga-se, antes, de sugerir a criação de Centros de Acolhimento de Cidadãos Estrangeiros, quer nos termos da lei existente, quer de outra, a elaborar, para se poderem propiciar condições mínimas de conforto, e de restituição às pessoas da sua dignidade humana, enquanto esperam, nos termos deste tipo de procedimento, pela concessão de um estatuto que lhes abra as portas de um País com cuja amizade contavam.

31 de Agosto de 1997

1 Elaborado pelo Dr. Paulo Marrecas Ferreira, Técnico Superior do Gabinete de Documentação e Direito Comparado da Procuradoria Geral da República.

2 Reconhece-se que a proposta de lei remete para a lei nº 34/94 de 14 de Setembro que prevê a instalação em Centro de instalação temporária assim que a permanência na zona internacional perfaça as quarenta e oito horas. Os centros de instalação temporária ainda não existem e é precisamente o que, com a argumentação desenvolvida no texto, se reclama. Reconhece-se, também, que o nº 3 do artigo 20º da proposta prevê que o silêncio da Administração durante os prazos previstos para o procedimento acelerado determina a entrada do requerente em território nacional, seguindo-se as restantes fases do procedimento de asilo. Mesmo assim, e apesar destes ponderosos argumentos, não nos parece que o requerente de asilo que formule o seu pedido na zona internacional do aeroporto esteja colocado em pé de igualdade com os demais requerentes de asilo.