O que continua a estar em causa nas críticas à actual
legislação sobre o direito de asilo - Lei nº 70/93,
de 29 de Setembro, é o saber se pretendemos uma sociedade assente
na solidariedade ou no egoísmo individual ou colectivo. É
grave não só o facto de se ter verificado um retrocesso relativamente
à anterior Lei nº 38/80, mas também que o Governo tenha
utilizado uma estratégia argumentativa que manipulou dados estatísticos
e explorou inclusive preconceitos relativamente aos estrangeiros.
O retrocesso é manifesto, quer no que se refere na eliminação
do direito de asilo por razões humanitárias, quer na generalizada
diminuição das garantias em matéria processual, particularmente
no que se refere ao chamado processo acelerado.
Relativamente ao asilo por razões humanitárias, a anterior
Lei n. 38/80, tinha-o admitido e o facto da nova lei o ter eliminado veio
em sentido contrário a tomadas de posição significativas
a nível internacional.
Num notável documento, intitulado precisamente "Os Refugiados - Um Desafio à Solidariedade" da responsabilidade das mais altas instâncias nesta matéria da Igreja Católica e que foi editado entre nós pelo Secretariado Geral do Episcopado, em 1992, referindo-se às pessoas, "que são vítimas de conflitos armados, políticas económicas erradas ou desastres naturais", diz-se:
... A Assembleia Geral das Nações Unidas pediu, em diversas ocasiões, ao Alto Comissário para os Refugiados, que intervenha no sentido de dar assistência a estas pessoas que involuntariamente se encontram fora do seu próprio país. A conduta corrente na Europa, depois das duas guerras mundiais e mais recentemente nalguns países de primeiro asilo noutros continentes, moveu-se nesta direcção". (pp. 9-11)
A ideia subjacente à Lei nº 70/93 é de que o direito de asilo, é uma prerrogativa do Estado que o concede discricionariamente invocando critérios de ordem pública, ignorando que à luz do artigo 33º da Constituição da República, o direito ao asilo é um direito subjectivo fundamental. Cabe à entidade que aprecia um pedido de asilo, verificando se existem ou não os pressupostos desse direito, não o conceder, como referiu justamente José Lamego durante o debate da autorização legislativa sobre esta matéria (DAR I Série nº 90 de 01.07.93, p. 2936).
É por ter o asilo numa perspectiva policial e de ordem pública que o Governo faz aprovar um processo acelerado que não assegura um exame individualizado e completo de cada requerimento de asilo, com a intervenção de autoridade especializada independente, como era o caso da Comissão Consultiva para os Refugiados, adequada ponderação objectiva da situação do país de origem do requerente e meios apropriados de recurso contencioso célere com efeito suspensivo.
O próprio processo normal que se destina actualmente a um número reduzido de pedidos, viu diminuídas as suas garantias. O recurso para o Supremo Tribunal Administrativo que tinha anteriormente sempre efeito suspensivo, poderá vir a tê-lo ou não. Ora só o recurso com efeito suspensivo poderá assegurar a garantia constitucional da tutela judicial efectiva.
Muitos outros aspectos podiam ser apontados para assinalar o retrocesso verificado em matéria de regulamentação do direito de asilo, nomeadamente o recuo verificado no que se refere à extensão dos efeitos do asilo. A Lei nº 38/80 estabelecia que: "Os efeitos dos asilo devem ser declarados extensivos ao cônjuge e aos filhos do requerente e podem ser declarados extensivos a outros membros do seu agregado familiar, desde que este o requeira e prove a qualidade destas pessoas". O actual art. 5º da Lei 70/93 prevê apenas que: "Os efeitos de asilo podem ser declarados extensivos ao cônjuge e aos filhos menores solteiros ou incapazes de peticionário ou, sendo este menor de 18 anos, ao pai ou à mãe".
A estratégia argumentativa seguida pelo Governo pretendeu criar a ideia de que estaríamos perante um gravíssimo problema, um grande crescimento do número de refugiados, e de estrangeiros em geral, com pesadas consequências para a segurança social pelas despesas que acarretariam e com graves repercussões em matéria de ordem pública. Esta estratégia assentou na manipulação de alguns números considerados isoladamente, omitiu outros elementos, e dirigiu-se ao egoísmo individual e colectivo.
Não se disse que dos 17 milhões de refugiados existentes no mundo, em 1993, 90% encontram-se nos países do Terceiro Mundo. Na Europa estão apenas cerca de 800 mil.
Fez-se crer que existiriam cerca de 250 mil estrangeiros em Portugal, quando, de acordo com os números do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras relativos a 1993 e divulgados pelo INE, existiam apenas 131.593 estrangeiros com residência legal. Ora, como o Governo tem defendido a desnecessidade de prosseguir a regularização dos estrangeiros em situação irregular por já serem poucos, é hoje manifesto que se pretendeu "tornar as almas mais pequenas" para se fazer passar a actual legislação.
O que também não foi ainda dito é que a grande maioria dos candidatos ao asilo entram através da fronteira terrestre, e que portanto o aumento de pedidos, invocado para tornar mais restritiva a legislação em matéria de asilo, se deveu à imprevidência do Governo na forma como concretizou a antecipação da livre circulação entre Portugal e Espanha. A maioria dos candidatos ao asilo vem de Espanha e não através da fronteira aérea.
A segurança social pouco apoio vem prestando aos candidatos ao asilo, que foram praticamente abandonados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desde Junho de 1993.
Neste contexto, merece referência positiva a forma generosa e empenhada como a Obra Católica das Migrações tem procurado ajudar para além das suas próprias possibilidades muitos destes candidatos que viram os pedidos recusados e que tendo ou não interposto recurso contencioso se vêem abandonados por todos quase todos.
Esta situação é um desafio a todos nós, à capacidade de solidariedade e indignação da sociedade civil. A criação dos centros de instalação temporária não é solução. O facto de sobre a mesma designação se pretenderem reunir centros soi-disant com vocação social e outros com vocação privativa de liberdade, possivelmente inclusive no mesmo edifício, deixa antever a sua verdadeira vocação. Não será uma solução, mas mais um problema. Isto não pode deixar indiferente todos os juristas que se batem pelos direitos humanos, bem como o facto de haver candidatos as asilo que requereram o apoio judiciário junto do S.T.A. para efeitos de interposição de recurso contencioso e que viram o seu pedido indeferido. é justo referir que outras decisões em sentido contrário foram felizmente tomadas nomeadamente por Juizes do S.T.A. vidé Acórdão proferido no Processo nº 32832, da 1 Secção, publicado na Revista do Ministério Público, nº 57, Janeiro/Março 1994.
A alegada utilização do pedido de asilo para recobrir uma situação de imigração económica tem de ser colocada também nos seus justos termos.
É óbvio que é necessário regular os fluxos migratórios, mas isso passa também por ser possível imigrar legalmente em determinadas condições.
Se não houver situações em que é possível imigrar legalmente é óbvio que muitos tentarão fazê-lo de qualquer forma. Mas esta, é uma questão, que não se confunde com a do asilo.
O que está em causa no debate sobre a forma como foi regulado o direito de asilo e o estatuto dos refugiados, são direitos humanos fundamentais, é a própria qualidade da democracia e da sociedade que pretendemos construir. Pela nossa parte, queremos construir uma sociedade solidária, numa Europa solidária e aberta ao sofrimento do Mundo.
1 Trabalho publicado em Asilo em Portugal, Vol. 1, CPR, Dezembro de 1994
2 Responsável do PS para a Imigração, actual Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas, que apesar de não ter podido estar presente nesta reunião, sugeriu que este trabalho aqui fosse integrado por ainda reflectir a sua posição actual.