As questões de refugiados estão, em muitos aspectos, ligadas
a questões estratégicas e, apraz-me dizê-lo, são
cada vez mais reconhecidas como tal. São estratégicas, porque
não podem ser separadas das questões de paz e segurança
internacionais, e porque a sua prevenção e solução
requerem uma reflexão e uma resposta estratégicas. Receio
que não tenha respostas preparadas para muitos dos problemas de
deslocações dos dias de hoje. O que eu sei, é que
a abordagem usual sobre a questão é totalmente inapropriada.
Os dias de reacções ad hoc, mais centradas nos sintomas
do que nas causas, devem pertencer ao passado. A gestão e a solução
das crises humanitárias têm de ser indagadas no contexto de
um sistema global de governação, próprio da era pós-guerra
fria. Precisamos de uma estratégia internacional concertada, baseada
em estudos académicos inovadores, do conhecimento prático
de especialistas e de uma sólida liderança política.
Acção Humanitária e a Estrutura Política
Internacional
O início da minha actividade como Alta Comissária para os
Refugiados, em princípios de 1991, coincidiu com o colapso da estrutura
da guerra fria na cena política global. Embora a confrontação
Leste-Oeste tenha sido responsável, directa ou indirectamente, por
muitos conflitos no mundo em desenvolvimento, a "estrutura" bipolar, se
assim lhe posso chamar, significava também um certo grau de clareza
e previsibilidade para o ACNUR. Se bem que o nosso trabalho nunca tinha
sido fácil, sabíamos o que fazer. Durante longos períodos,
demos protecção e assistência a refugiados que fugiam
dos regimes comunistas, das guerras por procuração e de conflitos
com as descolonizações. As soluções só
eram encaradas quando relacionadas com mudanças de regime, sendo
contudo remotas.
Nessa época, a protecção internacional de refugiados, a qual constitui o âmago do nosso mandato, era menos complicada e bastante menos controversa do que é hoje. A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto de Refugiados que, tendo sido ratificada por 133 Estados, continua a ser o instrumento básico universal neste domínio, foi baseada e foi fortemente influenciada pela estrutura da guerra fria. Acolher refugiados consistia, frequentemente, num corolário político e humanitário da divisão ideológica. O nosso trabalho assentava também em premissas sobre a previsibilidade teórica do sistema de estado vestfaliano. Embora um movimento de direitos humanos, cada vez mais expressivo começasse a atacar o absolutismo da soberania e da não interferência decorrente do adágio vestfaliano eius regio, cuius religio, o ACNUR, em princípio, operava apenas nos países de asilo.
No mundo contemporâneo, contudo, a natureza dos conflitos que afectam a paz e a segurança internacionais mudou. Como todos sabemos, mais do que a uma nação em situação de guerra, nós assistimos a conflitos internos. Se bem que muitos tenham dimensões regionais, a agressão externa não é perceptível ou as principais potências não estão de acordo quanto à sua relevância. Cada vez mais, estes conflitos são confrontações entre grupos étnico-políticos para além dos familiares padrões da democracia contra a ditadura, quer de direita, quer de esquerda. Invariavelmente, tal resulta em deslocações maciças e extremamente rápidas, tanto internas, como externas. Depois de se silenciarem as armas, como aconteceu na Bósnia, a reconciliação é uma outra e árdua batalha, inviabilizando o início do repatriamento dos refugiados. Permitam-se a franqueza. Não estabelecemos qualquer abordagem internacional sólida, nem um regime para atacar tais problemas, cada vez mais difíceis de tratar. Embora tenham sido salvas muitas vidas, a resposta internacional às mega-crises dos anos noventa tem sido, na generalidade, selectiva, específica e improvisada, quer tenha havido o envolvimento das NU ou de actores regionais multilaterais. Receio que a resposta esteja demasiadas vezes sujeita a vicissitudes devido a interesses estratégicos - ou à ausência desses interesses - por parte das principais potências e países adjacentes no campo de acção do conflito.
A natureza variável dos conflitos afectou profundamente o trabalho
do ACNUR. Este expandiu-se e diversificou-se, tornando-se muito mais complexo
e perigoso. Em 1996, dávamos protecção não
só aos 13.2 milhões de refugiados que atravessaram fronteiras
internacionais, mas também procurámos reforçar a protecção
e a segurança material de 3.3 milhões de refugiados repatriados
nas primeiras fases da sua reintegração, de 4.7 milhões
de pessoas internamente deslocadas e de 4.9 milhões de outras vítimas
de conflito. O número global de pessoas deslocadas internamente
não é conhecido, mas estima-se que ultrapasse o total de
refugiados. A sua sorte é, frequentemente, tão desafortunada
como a dos refugiados, não havendo até agora uma agência
internacional mandatada para os abranger. Acções concretas
a seu favor podem ser barradas pelos Estados, com base na soberania nacional,
excepto quando tomadas no âmbito da acção do Capítulo
VII. O compromisso do ACNUR com as pessoas deslocadas internamente tem
sido flexível, em conformidade com os pedidos específicos
do Secretário-Geral ou dos principais órgãos das NU.
Embora queiramos ajudar tantas pessoas quanto possível, há
que ter em consideração a ligação com as nossas
actividades de mandato, os recursos e o pessoal de segurança. As
agências humanitárias não podem sempre carregar sozinhas
o fardo da intervenção humanitária, quando não
se empreendem as acções políticas e de segurança
indispensáveis. Sinto, com demasiada frequência, que servimos
para compensar a inacção política.
Na verdade, a acção humanitária tornou-se num
instrumento da política ainda mais marcado, em particular da política
externa, do que já era no passado. Algumas manifestações
disso mesmo são inofensivas, por exemplo, quando em negociações
humanitárias sobre acesso, troca de prisioneiros ou regresso de
refugiados, ajuda a criar confiança durante conversações
políticas bloqueadas. Ao mostrar dividendos a todos os lados, a
acção humanitária imparcial pode, até certo
ponto, contribuir para se aproximarem. Pode também ajudar a restaurar
a ideia das NU como um mediador político equitativo em situações
em que tenham sido afectadas forças das NU de manutenção
da paz, ou tenha mesmo havido ameaças de utilização
da força. Mas existem também manifestações
mais preocupantes. As questões humanitárias e de direitos
humanos são constantemente exploradas pelas partes em conflito e
seus protagonistas, visando pressionar o lado contrário através
dos órgãos de comunicação social. Estou, também,
extremamente preocupada com os desvios da ajuda humanitária, efectuados
por elementos armados que, em muitos conflitos, mal se distinguem de normais
civis. A mistura de objectivos políticos em intervenções
humanitárias constitui um outro aspecto da imbricação
do humanitarismo com as questões políticas.
Voltando aos refugiados, a relativa previsibilidade da protecção
dos refugiados evaporou-se devido ao desgaste do instituto de asilo, à
mistura entre movimentos migratórios e de refugiados nos países
ricos e à ênfase dada às consequências adversas
dos fluxos de refugiados nos países pobres. A crescente democratização
e a liberdade de imprensa dos últimos tempos, por exemplo em África,
conduziram a pressões cada vez maiores por parte da opinião
pública interna. A repartição internacional dos encargos
no mundo industrializado não funciona, estando indevidamente dividida
entre países ricos e pobres.
Atacar as Crises Humanitárias
Talvez vos pareça que me estou a lamentar demasiado acerca dos meus problemas e preocupações. A questão que se põe é como os atacar. Escusado será dizer, que as causas dos fluxos de refugiados são de natureza política. Muitos dos ameaçadores conflitos entre grupos dos dias de hoje, embora desencadeados por opressão política na falta de governação democrática, são produto de profundas desigualdades e injustiças sociais. Se o sentido de justiça tem origem ou é manipulado com contornos étnicos ou outros de carácter social, então os litígios podem vir a agravar-se. Confrontações pela hegemonia do poder político, como assistimos no Ruanda e no Burundi, reflectem assim a não existência de uma mistura complexa de direitos políticos e socioeconómicos das pessoas. Os argumentos de certos quadrantes de que, com o desenvolvimento político e uma grande reconstrução pós-guerra, se eliminaria o problema dos refugiados é, claramente, demasiado simplista. Nem todos os países pobres produzem refugiados. Quero sublinhar este aspecto porque é essencial um correcto entendimento destas relações causais ao se avançar na prevenção e nas estratégias orientadas para as soluções.
Quer a prevenção, quer as soluções para os problemas contemporâneos de refugiados passam pela resolução dos conflitos políticos. A necessidade de se efectuarem intervenções militares no decurso da resolução do conflito, depende da energia necessária para vencer as forças obstrucionistas e dos objectivos políticos e humanitários a atingir. Refiro-me aqui à intervenção militar pelas forças de manutenção da paz das NU ou por uma coligação de vários Estados, num contexto de conflitos internos dos dias de hoje, quando comparados com todas as guerras internacionais externas a que assistimos no passado. Para os actores humanitários, a cooperação com os militares mesmo numa missão limitada como esta, sempre levantou incertezas. Será que a protecção militar para prestação de assistência compromete a neutralidade e a imparcialidade da acção humanitária? Será que a acção militar pode manter-se neutra quando as guerras se intensificam?
Durante os anos turbulentos do conflito na Bósnia-Herzegovina, a hesitação inicial do ACNUR quanto a receber protecção militar para as suas colunas, foi-se alterando gradualmente, por já não conseguir levar a cabo a sua missão sem a cooperação da UNPROFOR. Na verdade, foi graças ao apoio militar da UNPROFOR, que o ACNUR e os seus parceiros puderam manter uma das maiores e mais complexas operações de emergência da história. Embora o sofrimento humano e, talvez mesmo, o expandir do conflito tenham sido contidos, testemunhámos, também, dolorosamente, a impossibilidade de uma missão de manutenção da paz excessiva, em que não havia paz para manter e em que a protecção das "zonas de segurança" começaram a corroer a neutralidade da sua missão.
Quando a NATO chegou e usou a força contra os sérvios da Bósnia, tornou-se delicada a nossa relação com os militares, em termos da nossa neutralidade e imparcialidade humanitárias. A nossa tarefa tornou-se praticamente impossível no Verão de 1995. Forçar ao cumprimento é, de facto, uma questão crítica. Pode complicar os árduos esforços envidados por mediadores do conflito que preferem operar em campo "neutro" e pode conduzir a retaliações contra o pessoal humanitário e a bloqueios impedindo que se salvem vidas e impedindo o acesso às populações do lado oposto. Por outro lado, a neutralidade estrita e a protecção não efectiva podem conduzir ao não estabelecimento de acordos políticos. E as respostas humanitárias também não podem garantir a segurança das populações. As operações de ajuda humanitária tornam-se uma desculpa para evitar uma acção político-militar resoluta.
Com a intensificação da acção militar, em Agosto de 1995, Sarajevo demonstrou que uma cidade e a sua população podem ser salvas quando as principais potências decidem agir. Com a intervenção de uma liderança política determinada quer na Europa, quer através do Atlântico, por uma questão de compaixão, ou talvez mais ainda, por um compartilhar de interesses políticos em pôr fim às tensões políticas na Aliança Atlântica. A combinação de acções para obrigar ao cumprimento e a liderança política deram também o empurrão necessário para se chegar a Dayton, em Novembro de 1995. Dayton pôs-nos de novo a todos no caminho da paz. Uma intervenção militar quatro anos antes, em Vukovar, poderia muito bem ter feito o mesmo. Sim, estou um pouco amarga como tantos outros, por ter vivido a devastação e a limpeza étnica e estar agora encarregada de ajudar a reverter isso, organizando o regresso às suas casas de 2.1 milhões de refugiados e pessoas deslocadas internamente. Poderia a comunidade internacional ter evitado a derrocada, se tivesse tomado mais cedo uma acção resoluta? Ou seria inevitável que os esforços humanitários e políticos tivessem este rumo.
Após Dayton, a Bósnia é um exemplo vivo da relação simbiótica entre acção política, militar e humanitária para resolver os problemas dos refugiados e estabelecer uma paz duradoura e segurança. Com 250.000 pessoas que regressaram - e as muitas mais que se espera venham a fazê-lo nos próximos meses - estamos a fazer progressos. Além da ocupação e destruição das casas, das obstruções políticas, sobretudo na Sérvia bósnia e no lado croata, mantém-se, contudo, o maior obstáculo para o regresso inter-etnias e, por isso, para a reintegração na Bósnia. A Bósnia mostra-nos que não pode existir uma prolongada paz militar sem haver paz civil. Estamos extremamente preocupados se o futuro do acordo de Dayton está em causa. No que se refere aos refugiados, Dayton deixa em aberto a escolha entre o regresso para o seu local de origem e a relocalização, dando assim espaço para acções de inclusão etno-política, bem como à exclusão. A fórmula de Dayton foi, provavelmente, a única possível através de negociações políticas, mas não aponta para um compromisso real acerca de uma definição multi ou mono-étnica da sociedade e deixa os actores humanitários como o ACNUR a debaterem-se com questões essencialmente políticas. A pressão de alguns países europeus para repatriar os refugiados independentemente do seu local de origem ou de onde se poderão voltar a fixar, não ajuda e pode conduzir na Bósnia ao perigoso efeito de "panela de pressão". No que respeita ao ACNUR, comprometemo-nos a tornar possível os regressos inter-etnias, mas precisamos da estreita participação das forças de segurança da NATO, de progressos direccionados para a reconstrução e de uma retaguarda de apoio político concertada.
No âmbito da nossa estreita colaboração com os actores políticos e militares, a experiência no Ruanda e no Zaire tem sido bastante penosa. Na realidade, essa relação não se materializou, excepto aquando da assistência militar durante o fluxo inicial de 1.1 milhões de refugiados ruandeses para o Zaire, no Verão de 1994, durante e após o genocídio no seu país. Sem a capacidade militar de transporte aéreo e de assistência de emergência, o ACNUR não teria podido fazer frente à desastrosa situação em Goma, quando morreram milhares de pessoas. Contudo, a assistência militar rapidamente saiu de cena, no meio de especulações acerca do possível reavivar do conflito armado entre os hutus destituídos e a nova liderança tutsi. Entre as principais potências não houve a intenção de utilizarem os seus militares ou de envidarem esforços intensivos para resolver os complexos problemas políticos e étnicos da região.
Muito rapidamente, a situação de segurança nos campos de refugiados no Zaire e na Tanzânia foi-se agravando. Sob o controlo da ex-liderança política, do antigo exército e das milícias ruandesas, o repatriamento de refugiados foi, frequentemente, violentamente obstruído. Em estreita consulta com o ACNUR, o Secretário Geral das NU propôs várias opções ao Conselho de Segurança visando mobilizar apoio de segurança para pôr termo à situação. A resposta foi negativa e nada aconteceu. Como medida de substituição mínima, o ACNUR criou então um contingente de segurança com o Governo Zairense, recrutando soldados zairenses e um pequeno número de pessoal de segurança estrangeiro. A sua tarefa era assegurar um mínimo de lei e de ordem nos campos no Zaire, o que foi feito. As agências humanitárias foram deixadas sozinhas, sendo depois criticadas por proteger e alimentar os que tinham cometido genocídio. Foram angustiantes os dilemas por que passámos, mas sendo a grande maioria de pessoas nos campos constituída por inocentes e civis carenciados, será que teríamos outra opção?
O fracasso do Zaire e da comunidade internacional em separar os elementos
militares dos refugiados contribuiu para espalhar a insegurança
e o conflito. Na tensão inter-etnias no leste do Zaire incluíam-se
as milícias ruandeses no exílio, uma vez que as incursões
pelas fronteiras nos dois sentidos agravaram a tensão entre o Ruanda
e o Zaire. Dois conflitos essencialmente internos foram-se imbricando e
internacionalizando, levando eventualmente à guerra no Zaire.
Não vou entrar em detalhes acerca da tentativa, nos finais de
96, para criar uma força de coligação humanitária
para o Leste do Zaire. Autorizada com base no Capítulo VII, essa
força visava assistir o repatriamento de refugiados e dar protecção
às operações de ajuda humanitária. No entanto,
os Estados participantes não pretendiam, claramente, separar os
elementos militares dos refugiados. Embora o MNF estivesse vacilante quanto
à sua entrada no conflito, a reviravolta de 500.000 refugiados ruandeses
ameaçados pelos forças rebeldes atacantes reduziu rapidamente
o interesse das principais nações contribuintes quanto à
intervenção militar. Em Dezembro, o ACNUR foi mesmo acusado
de exagerar o número da população refugiada restante,
perseguida e dispersa no mato, no Zaire. Parecia bastante claro quem tinha
sido favorecido com a afectação da Força e quem não
o tinha sido. Cada país tinha o seu próprio objectivo, não
necessariamente humanitário. Como no caso da Bósnia, a acção
humanitária efectiva foi prejudicada pela ausência de um convergência
de opiniões e interesses entre as principais potências. Fugindo
de forma caótica de um local para outro, muitos estão a morrer
à fome e de exaustão. Embora tenhamos, finalmente, conseguido
acesso para lhes prestar assistência de emergência e para os
ajudar no repatriamento para o Ruanda, o pessoal humanitário continua
a enfrentar enormes riscos de segurança e limitações
logísticas. O estabelecimento da paz no Zaire está longe
de ser uma certeza, e para a reconciliação entre os hutus
e os tutsis no Ruanda, há ainda um longo caminho a percorrer. Temos
de reconhecer que, mais do que humanitários, os problemas são
sobretudo eminentemente políticos.
Rumo a uma Cooperação Plena e Eficaz na Gestão das Crises
Quais as lições que podem ser tiradas das múltiplas facetas da interacção entre factores políticos, militares e humanitários em situações de conflito? Como se deverá posicionar uma agência como o ACNUR e influenciar os complexos desenvolvimentos em curso?
Espero ter demonstrado que, para o melhor e para o pior, os problemas
humanitários, políticos e de segurança, assim como
as suas soluções, encontram-se ligados e influenciam-se uns
aos outros. Assim, permitam-me, em primeiro lugar, reiterar o meu
apelo para que se efectuem melhores abordagens integradas na gestão
das crises internacionais. A acção humanitária, mais
do que uma mera questão de caridade internacional, pode apoiar a
paz e a reconciliação. Por sua vez, ela depende da acção
política e, por vezes, da acção militar para pôr
fim ao sofrimento humano, quer a curto prazo, durante o conflito, ou a
longo prazo, fazendo com que a paz fique mais perto. A acção
humanitária, a construção da paz e a vontade de atacar
as questões de segurança estão interligadas. Na falta
de uma estrutura internacional abrangente para verificações
e pontos de situação, elas podem em conjunto gerar a sinergia
necessária de modo a, pelo menos, evitar que o caos se expanda num
mundo que, cada vez mais, estar a mudar a velocidades muito diferentes.
Tanto por razões morais como práticas, não podemos
deixar inflamar feridas localizadas usando o tratamento do passado, do
qual felizmente estamos a afastar-nos.
O segundo ponto que quero destacar é a necessidade de
se repensar o conceito de ameaça à paz e à segurança
internacionais, como base para uma acção colectiva. Se as
calamidades na ex-Jugoslávia e na região dos Grandes Lagos
de África demonstraram algo, parece ser a frequente indivisibilidade
da paz entre e no interior dos Estados, mas também entre a segurança
internacional e a segurança humana. Reconheço a este respeito
com profundo apreço o interesse activo mostrado nos últimos
anos pelo Conselho de Segurança das NU quanto às questões
humanitárias, mesmo quando o seu impacto além fronteiras
para a paz e a segurança internacionais não foi imediato.
Para mim, isto constitui um enorme progresso atendendo às realidades
de hoje. Há que ser mais explorado e consolidado.
Terceiro, gostaria de realçar que o reconhecimento da dependência, bem como do potencial da acção humanitária, não deve torná-la subserviente a interesses da esfera política e de segurança. A acção humanitária não deve ser usada nem como recurso, nem como bode expiatório. A sua integridade deve ser preservada: a sua força, mas também as suas fraquezas, devem ser plenamente conhecidas ao se tomarem decisões políticas. Embora a presença humanitária possa ter um efeito moderador sobre as autoridades receptoras, as agências humanitárias não podem garantir protecção contra ataques violentos à segurança das populações e é esta protecção que, embora sendo a mais necessitada, continua a faltar. Preservar a integridade da acção humanitária significa reconhecer plenamente a imparcialidade que é dedicada às necessidades materiais e de protecção das vítimas de ambos os lados de um conflito. Significa distinguir imparcialidade humanitária da questão da neutralidade política, uma distinção que pode levantar graves questões práticas em operações integradas e, a nós, penosos dilemas morais quando lidamos com actos odiosos. Significa reconhecer a imparcialidade humanitária, sem se esconder por detrás dela, por relutância em escolher um lado, ficando contra comportamentos ou objectivos inaceitáveis. Significa traçar linhas claras quando, em nome das negociações para a paz e estabilidade, certos direitos humanos e interesses humanitários podem ser sacrificados. E significa que não se devem deixar ficar para os actores humanitários situações confusas com questões políticas não resolvidas na transição da guerra para a paz. Percebo que essas são questões difíceis atendendo à realidade e aos dilemas com os quais temos de trabalhar, mas estou convencida que têm devem ser enfrentadas no interesse de acções humanitárias e de paz eficazes.
O quarto e último ponto que gostaria de mencionar, refere-se ao nível institucional e diz respeito ao futuro das NU. O processo de reforma em curso oferece uma oportunidade crucial para definir claramente o papel das NU, inclusive a sua função humanitária, como complemento da sua função essencial pela paz e pela segurança. É da maior importância que se defina uma divisão adequada de responsabilidades entre a organização mundial e os seus Estados membros. Embora tenha esperança no fortalecimento da missão das NU para o estabelecimento de acordos políticos em conflitos, esta tarefa necessita de ser melhor sincronizada com iniciativas diplomáticas e potenciais meios de persuasão dos Estados membros, actores políticos regionais e organizações económicas. Com demasiada frequência, tem existido mais um estado de confusão facilmente explorável do que de sinergia. Se as nações que lideram o mundo apoiassem plenamente o papel fundamental das NU para a paz - em vez de se envolverem em áreas em que os seus interesses estratégicos são escassos - então a organização deveria, a meu ver, munir-se de capacidade militar para afectação rápida Essas forças deveriam estar preparadas, não só para dar protecção e apoiar a distribuição da assistência em mega-crises, mas também, é o que esperamos, mandatadas para separar e desarmar elementos armados em campos de refugiados civis. Constituiriam a alavanca necessária para refrear os elementos que impedem o estabelecimento da paz, bem como para apoiar os que são favoráveis ao estabelecimento da paz.
Tendo chegado ao fim da minha exposição, vou concluir afirmando que acredito que a acção humanitária tem um papel importante a desempenhar numa estratégia integrada para a Paz de que tanto necessitamos. A acção humanitária centra-se na protecção dos seres humanos. Não garantindo a segurança humana, a paz e a prosperidade não conseguem durar muito tempo. Qualquer estratégia político-militar deve ter devidamente em consideração a dimensão humana da sua acção. Quero agradecer a todos vós, que representam a comunidade do pensamento estratégico, o interesse que mostraram por esta minha exposição. Para as vítimas de perseguição e de conflitos, é indispensável o empenhamento de órgãos de reflexão, como é o caso deste Instituto.
2 Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados.