Brasil
Lei no. 9.474,
de 22 de julho de 1997*
Define mecanismos para a implementação do Estatuto
dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono
a seguinte Lei:
TÍTULO I
Dos Aspectos Caracterizadores
CAPÍTULO I
Do Conceito, da Extensão e da Exclusão
SEÇÃO I
Do Conceito
Art. 1. Será reconhecido como refugiado todo indivíduo
que:
-
devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas
encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa
ou não queira acolher-se à proteção de tal
país;
-
não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes
teve sua residência habitual, não possa ou não queira
regressar a ele, em função das circunstâncias descritas
no inciso anterior;
-
devido a grave e generalizada violação de direitos humanos,
é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar
refúgio em outro país.
SEÇÃO II
Da Extensão
Art. 2. Os efeitos da condição dos refugiados serão
extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como
aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente,
desde que se encontrem em território nacional.
SEÇÃO III
Da Exclusão
Art. 3. Não se beneficiarão da condição
de refugiado os indivíduos que:
-
já desfrutem de proteção ou assistência por
parte de organismos ou instituição das Nações
Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados - ACNUR;
-
sejam residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações
relacionados com a condição de nacional brasileiro;
-
tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime conta a
humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico
de drogas;
-
sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios
das Nações Unidas.
CAPÍTULO II
Da Condição Jurídica de Refugiado
Art. 4. O reconhecimento da condição de refugiado,
nos termos das definições anteriores, sujeitará seu
beneficiário ao preceituado nesta Lei, sem prejuízo do disposto
em instrumentos internacionais de que o Governo brasileiro seja parte,
ratifique ou venha a aderir.
Art. 5. O refugiado gozará de direitos e estará
sujeito aos deveres dos estrangeiros no Brasil, ao disposto nesta Lei,
na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no
Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, cabendo-lhe a obrigação
de acatar as leis, regulamentos e providências destinados à
manutenção da ordem pública.
Art. 6. O refugiado terá direito, nos termos da
Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, a cédula
de identidade comprobatória de sua condição jurídica,
carteira de trabalho e documento de viagem.
TÍTULO II
Do Ingresso no Território Nacional e do Pedido
de Refúgio
Art. 7. O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá
expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer
autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará
as informações necessárias quanto ao procedimento
cabível.
1º. Em hipótese alguma será efetuada sua deportação
para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja
ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade,
grupo social ou opinião política.
2º. O benefício previsto neste artigo não
poderá ser invocado por refugiado considerado perigoso para a segurança
do Brasil.
Art. 8. O ingresso irregular no território nacional
não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio
às autoridades competentes.
Art. 9. A autoridade a quem for apresentada a solicitação
deverá ouvir o interessado e preparar termo de declaração,
que deverá conter as circunstâncias relativas à entrada
no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país
de origem.
Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições
previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento
administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o
peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.
1º. Se a condição de refugiado for reconhecida,
o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração
correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito
reconhecimento.
2º. Para efeito do disposto no parágrafo anterior,
a solicitação de refúgio e a decisão sobre
a mesma deverão ser comunicadas a Polícia Federal, que as
transmitirá ao órgão onde tramitar o procedimento
administrativo ou criminal.
TÍTULO III
Do CONARE
Art. 11. Fica criado o Comitê Nacional para os Refugiados
- CONARE, órgão de deliberação colectiva, no
âmbito do Ministério da Justiça.
CAPÍTULO I
Da Competência
Art. 12. Compete ao CONARE, em consonância com a Convenção
sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto
dos Refugiados de 1967 e com as demais fontes de direito internacional
dos refugiados:
-
analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância,
da condição de refugiado;
-
decidir a cessação, em primeira instância, ex ofício
ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição
de refugiado;
-
determinar a perda, em primeira instância, da condição
de refugiado;
-
orientar e coordenar as ações necessárias à
eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico
aos refugiados;
-
aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução
desta Lei.
Art. 13. O regimento interno do CONARE será aprovado
pelo Ministro de Estado da Justiça.
Parágrafo único O regimento interno determinará
a periodicidade das reuniões do CONARE.
CAPÍTULO II
Da Estrutura e do Funcionamento
Art 14. O CONARE será constituído por:
-
um representante do Ministério da Justiça, que o presidirá;
-
um representante do Ministério das Relações Exteriores;
-
um representante do Ministério do Trabalho;
-
um representante do Ministério da Saúde;
-
um representante do Ministério da Educação e do Desporto;
-
um representante Departamento de Polícia Federal;
-
um representante de organização não-governamental,
que se dedique a atividades de assistência e protecção
de refugiados no País.
1º. O Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados - ACNUR será sempre membro convidado para as reuniões
do CONARE, com direito a voz, sem voto.
2º. Os membros do CONARE serão designados pelo Presidente
da República, mediante indicações dos órgãos
e da entidade que o compõem.
3º. O CONARE terá um Coordenador-Geral, com a atribuição
de preparar os processos de requerimento de refúgio e a pauta de
reunião.
Art. 15. A participação no CONARE será
considerada serviço relevante e não implicará remuneração
de qualquer natureza ou espécie.
Art. 16. O CONARE reunir-se-á com quorum de
quatro membros com direito a voto, deliberando, por maioria simples.
Parágrafo único. Em caso de empate, será
considerado voto decisivo o do Presidente do CONARE.
TÍTULO IV
Do Processo de Refúgio
CAPÍTULO I
Do Procedimento
Art. 17. O estrangeiro deverá apresentar-se a autoridade
competente e externar vontade de solicitar o reconhecimento da condição
de refugiado.
Art. 18. A autoridade competente notificará o solicitante
para prestar declarações, ato que marcará a data de
abertura dos procedimentos.
Parágrafo único A autoridade competente informará
o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - ACNUR
sobre a existência do processo de solicitação
de refúgio e facultará a esse organismo a possibilidade de
oferecer sugestões que facilitem seu andamento.
Art. 19. Além das declarações, prestadas
se necessário com ajuda de intérprete, deverá o estrangeiro
preencher a solicitação de reconhecimento como refugiado,
a qual deverá conter identificação completa, qualificação
profissional, grau de escolaridade do solicitante e membros do seu grupo
familiar, bem como relato das circunstâncias e fatos que fundamentem
o pedido de refugiado, indicando os elementos de prova pertinentes.
Art. 20. O registro de declaração e a supervisão
do preenchimento da solicitação do refúgio devem ser
efetuados por funcionários qualificados e em condições
que garantam o sigilo das informações.
CAPÍTULO II
Da Autorização de Residência Provisória
Art. 21. Recebida a solicitação de refúgio,
o Departamento de Polícia Federal emitirá protocolo em favor
do solicitante e de seu grupo familiar que se encontre no território
nacional, o qual autorizará a estada até à decisão
final do processo.
1º. O protocolo permitirá ao Ministério do
Trabalho expedir a carteira de trabalho provisória, para o exercício
de atividades remuneradas no País.
2º. No protocolo do solicitante de refúgio serão
mencionados, por averbamento, os menores de quatorze anos.
Art. 22. Enquanto estiver pendente o processo relativo à
solicitação de refúgio, ao peticionário será
aplicável a legislação sobre estrangeiros, respeitadas
as disposições específicas contidas nesta Lei.
CAPÍTULO III
Da Instrução e do Relatório
Art. 23. A autoridade competente procederá a eventuais diligências
requeridas pelo CONARE devendo averiguar todos os fatos cujo conhecimento
seja conveniente para uma justa e rápida decisão, respeitando
sempre o princípio da confidencialidade.
Art. 24. Finda a instrução, a autoridade
competente elaborará, de imediato, relatório, que será
enviado ao Secretário do CONARE, para inclusão na pauta da
próxima reunião daquele Colegiado.
Art. 25. Os intervenientes nos processos relativos às
solicitações de refúgio deverão guardar segredo
profissional quanto às informações a que terão
acesso na exercício de suas funções.
CAPÍTULO IV
Da Decisão, da Comunicação e do Registro
Art. 26. A decisão pelo reconhecimento da condição
de refugiado será considerada ato declaratório e deverá
estar devidamente fundamentada.
Art. 27. Proferida a decisão, o CONARE notificará
o solicitante e o Departamento de Polícia Federal, para as medidas
administrativas cabíveis.
Art. 28. No caso de decisão positiva, o refugiado
será registrado junto ao Departamento de Polícia Federal,
devendo assinar termo de responsabilidade e solicitar cédula de
identidade pertinente.
CAPÍTULO V
Do Recurso
Art. 29. No caso de decisão negativa, esta deverá
ser fundamentada na notificação ao solicitante, cabendo direito
de recurso ao Ministro de Estado da Justiça, no prazo de quinze
dias, contados do recebimento da notificação.
Art. 30. Durante a avaliação do recurso,
será permitido ao solicitante de refúgio e aos seus familiares
permanecer no território nacional, sendo observado o disposto nos
1º. e 2º. do art. 21 desta lei.
Art. 31. A decisão do Ministro de Estado da Justiça
não será passível de recurso, devendo ser notificada
ao CONARE, para ciência do solicitante, e ao Departamento de Polícia
Federal, para as providências devidas.
Art. 32. No caso de recusa definitiva de refúgio,
ficará o solicitante sujeito à legislação de
estrangeiros, não devendo ocorrer sua transferência para o
seu país de nacionalidade ou de residência habitual, enquanto
permanecerem as circunstâncias que põem em risco sua vida,
integridade física e liberdade, salvo nas situações
determinadas nos incisos III e IV do art. 3º. desta Lei.
TÍTULO V
Dos Efeitos do Estatuto de Refugiados sobre a Extradição
e a Expulsão
CAPÍTULO I
Da Extradição
Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado
obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição
baseado nos fatos que fundamentam a concessão de refúgio.
Art. 34. A solicitação de refúgio
suspenderá, até decisão definitiva, qualquer processo
de extradição pendente, em fase administrativa ou judicial,
baseado nos fatos que fundamentam a concessão de refúgio.
Art. 35. Para efeito do cumprimento do disposto nos arts.
33 e 34 desta Lei, a solicitação de reconhecimento como refugiado
será comunicada ao órgão onde tramitar o processo
de extradição.
CAPÍTULO II
Da Expulsão
Art. 36. Não será expulso do território nacional
o refugiado que esteja regularmente registrado, salvo por motivos de segurança
nacional ou de ordem pública.
Art. 37. A expulsão de refugiado do território
nacional não resultará em sua retirada para país onde
a sua vida, liberdade ou integridade física possam estar em risco,
e apenas será efectivada quando da certeza de sua admissão
em país onde não haja riscos de perseguição.
TÍTULO VI
Da Cessação e da Perda da Condição
de Refugiado
CAPÍTULO I
Da Cessação da Condição de
Refugiado
Art. 38. Cessará a condição de refugiado nas
hipóteses em que o estrangeiro:
-
voltar a valer-se da proteção do país de que é
nacional;
-
recuperar voluntariamente a nacionalidade outrora perdida;
-
adquirir nova nacionalidade e gozar da proteção do país
cuja nacionalidade adquiriu;
-
estabelecer-se novamente, de maneira voluntária, no país
que abandonou ou fora do qual permaneceu por medo de ser perseguido;
-
não puder mais continuar a recusar a proteção do país
de que é nacional por terem deixado de existir as circunstâncias
em consequência das quais foi reconhecido como refugiado;
-
sendo apátrida, estiver em condições de voltar ao
país no qual tinha sua residência habitual, uma vez que tenham
deixado de existir as circunstâncias em consequência das quais
foi reconhecido como refugiado.
CAPÍTULO II
Da Perda da Condição de Refugiado
Art. 39. Implicará perda da condição de refugiado:
-
a renúncia;
-
a prova da falsidade dos fundamentos invocados para o reconhecimento da
condição de refugiado ou a existência de fatos que,
se fossem conhecidos quando do reconhecimento, teriam ensejado uma decisão
negativa;
-
o exercício de atividades contrárias à segurança
nacional ou a ordem pública;
-
a saída do território nacional sem prévia autorização
do Governo brasileiro.
Parágrafo único. Os refugiados que perderem
essa condição com fundamento nos incisos I e IV deste artigo
serão enquadrados no regime geral de permanência de estrangeiros
no território nacional, e os que a perderem com fundamento nos incisos
II e III estarão sujeitos às medidas compulsórias
previstas na Lei nº. 6.815 de 19 de Agosto de 1980.
CAPÍTULO III
Da Autoridade Competente e do Recurso
Art. 40. Compete ao CONARE decidir em primeira instância sobre
cessação ou perda da condição de refugiado,
cabendo, dessa decisão, recurso ao Ministro de Estado da
Justiça, no prazo de quinze dias, contados do recebimento da notificacão.
1º. A notificação conterá breve relato
dos fatos e fundamentos que ensejaram a decisão e cientificará
o refugiado do prazo para interposição do recurso.
2º. Não sendo localizado o estrangeiro para a notificação
prevista neste artigo, a decisão será publicada no Diário
Oficial da União, para fins de contagern do prazo de interposição
de recurso.
Art. 41. A decisão do Ministro de Estado da Justiça
é irrecorrível e deverá ser notificada ao CONARE,
que a informará ao estrangeiro e ao Departamento de Polícia
Federal, para as providências cabíveis.
TÍTULO VII
Das Soluções Duráveis
CAPÍTULO I
Da Repatriação
Art. 42. A repatriação de refugiados aos seus países
de origem deve ser caracterizada pelo caráter voluntário
do retorno, salvo nos casos em que não possam recusar a proteção
do país de que são nacionais, por não mais subsistirem
as circunstâncias que determinaram o refúgio.
CAPÍTULO II
Da Integração Local
Art. 43. No exercício de seus direitos e deveres,
a condição atípica dos refugiados deverá ser
considerada quando da necessidade da apresentação de documentos
emitidos por seus países de origem ou por suas representações
diplomáticas e consulares.
Art. 44. O reconhecimento de certificados e diplomas, os
requisitos para a obtenção da condição de residente
e o ingresso em instituições académicas de todos os
níveis deverão ser facilitados, levando-se em consideração
a situação desfavorável vivenciada pelos refugiados.
CAPÍTULO III
Do Reassentamento
Art. 45. O reassentamento de refugiados em outros países
deve ser caracterizado, sempre que possível, pelo caráter
voluntário.
Art. 46. O reassentamento de refugiados no Brasil se efetuará
de forma planificada e com a participação coordenada dos
órgãos estatais e, quando possível, de organizações
não-governamentais, identificando áreas de cooperação
e de determinação de responsabilidades.
TÍTULO VIII
Das Disposições Finais
Art. 47. Os processos de reconhecimento da condição
de refugiado serão gratuitos e terão caráter urgente.
Art. 48. Os preceitos desta Lei deverão ser interpretados
em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem
de 1948, com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados
de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com
todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteção
de direitos humanos com o qual o Governo brasi1eiro estiver comprometido.
Art. 49. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de julho de 1997; 176º. da Independência
e 109º. da República.
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
Iris Rezende
* Publicada no Diário Oficial
da União, nº. 139 - Seção I - Páginas
15822-15824 - 23 de julho de 1997, República Federativa do Brasil.