Intervenção no Workshop sobre o Novo Regime Jurídico do Asilo em Portugal
 Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 30 de Maio de 1997
 
A Nova Lei de Asilo em Portugal

por Luís Filipe Marques Amado*
 
É com muito gosto que participo neste debate, tendo em consideração que, pelas circunstâncias da vida política, acabei por ter a responsabilidade de orientar e de coordenar, do ponto de vista político, a elaboração do novo quadro legislativo para a regulação do direito de asilo em Portugal. Tendo em consideração a controvérsia gerada em 1993, com a aprovação do regime jurídico em vigor e, tendo em consideração as posições que, então na oposição, o grupo parlamentar do PS e o PS, designadamente, assumiram nesta matéria, a iniciativa de rever a lei, decorre, naturalmente, quer das posições do passado, quer dos compromissos do próprio programa do governo, em que se assumiu como princípio orientador, adequar o regime jurídico que regula o instituto de asilo em Portugal, de acordo com a experiência de aplicação da lei e de acordo, sobretudo, com o que é o quadro constitucional português. Diria, muito rapidamente, que em relação à metodologia seguida, ela foi, de alguma forma, no que diz respeito à estratégia legislativa e à partilha de responsabilidades entre o decisor político e estruturas formais ou informais que têm acompanhado a aplicação deste instituto em Portugal nos últimos anos, arrisco-me a dizer, uma experiência pioneira. Na sequência das insistências, quer da parte do responsável do Alto Comissariado das Nações Unidas (na pessoa da Doutora Luise Drüke, com todo o voluntarismo que lhe reconhecemos - as pessoas que mais de perto têm que lidar com a Senhora Doutora) quer por parte do CPR (Conselho Português para os Refugiados), quer de Organizações Não Governamentais, como a Obra Católica para as Migrações, e outras, que têm acompanhado, não apenas a questão do asilo em Portugal, mas também a questão da imigração, houve uma audição parlamentar na Assembleia da República, envolvendo a participação dos responsáveis dos grupos parlamentares e de Organizações Não Governamentais. Se nos lembrarmos que este debate ocorreu no início de 1996, portanto três anos apenas decorridos sobre o que tinha sido, no mesmo Parlamento, um debate muito marcado por uma forte paixão política na apreciação das normas então em discussão, e do quadro do regime que está, neste momento, em vigor e, considerando que tinham decorrido apenas três anos sobre este debate, foi curioso verificar como foi possível, apesar de tudo, nessa audição parlamentar, criar uma atmosfera construtiva, relativamente ao quadro jurídico para a regulação do instituto de asilo em Portugal. Isto permitiu colocar o instituto de asilo nesse domínio muito particular que ele tem no sistema constitucional português, mas também no quadro do núcleo essencial de valores e de princípios jurídicos que caracterizam a sociedade europeia enquanto tal.

Houve, de facto, nessa audição parlamentar, uma atmosfera política muito construtiva, a qual permitiu que, depois, o Grupo de Trabalho (envolvendo a participação do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas e do CPR) preparasse a proposta de lei que, neste momento, aprovada pelo governo, está na Assembleia da República para discussão, integrando muito do que foi o contributo das instituições que, directa ou indirectamente, acabaram por participar neste processo de elaboração da nova lei de asilo em Portugal. Referia isto, porque me parece que foi uma situação muito particular, no que se pode considerar uma estratégia legislativa para a regulação de um instituto que tem a dignidade que tem, e deve ter, na ordem jurídica interna.

O enquadramento da iniciativa foi sobretudo balizado pela preocupação de introduzir na legislação ordinária os ajustamentos necessários à conformação da lei, com a particular relevância que o direito de asilo tem no sistema constitucional português, sobretudo depois da revisão de 82, tendo o direito de asilo sido elevado à categoria dos Direitos Fundamentais e, por conseguinte, exigido um sistema de protecção mais adequado e de garantias processuais, justamente um dos aspectos mais críticos e controversos da legislação aprovada em 93.

Aprovada num contexto particularmente crítico de pressão migratória na Europa, como todos estão lembrados, e, designadamente, um contexto crítico de pressão no recurso ao instituto de asilo em muitas circunstâncias como forma de emigração económica. Foi tido em consideração o que tem sido a evolução do direito de asilo europeu neste domínio, particularmente, o disposto na Convenção de Dublin sobre a Determinação do Estado Responsável e tudo o que decorre da Convenção de Aplicação de Schengen, bem como as Resoluções do Conselho sobre as Garantias Mínimas do Direito de Asilo. Esta envolvente da ordem jurídica comunitária, relativamente às ordens jurídicas internas é, como todos têm consciência, uma dimensão incontornável do que é a evolução de muitos dos ramos do direito em Portugal e, particularmente, em tudo o que diz respeito ao direito de asilo e emigração. De acordo com este enquadramento, que foi estabelecido do ponto de vista político, e que foi seguido pelo Grupo de Trabalho, as principais alterações, muito rapidamente, diria que se traduzem numa nova matriz processual, em que a separação entre o processo acelerado e o processo normal é ultrapassada pela consideração de uma maior coerência processual, estabelecendo uma fase de admissibilidade para todos os processos, com recurso garantido e com audiência do interessado, a criação do Comissariado Nacional, enquanto órgão colectivo e não órgão unipessoal, substituindo portanto a forma de designação anterior, que era também salientada criticamente como um elemento de insegurança relativa do ponto de vista jurídico dos requerentes de asilo, dado a dependência na fórmula de designação do Comissário Nacional do Executivo. O Comissariado Nacional será constituído, se a proposta vier a ser aprovada como tal, por dois magistrados designados pelos respectivos Conselhos de Magistratura e, por conseguinte, independentes na sua fórmula de designação do próprio Executivo. Simultaneamente, estabelece-se algumas garantias processuais, clarificando essas garantias, uma das vulnerabilidades do sistema em vigor, reconhecido por todos os especialistas do direito de asilo em Portugal, e introduzem-se normas relativas à autorização de residência por razões humanitárias e relativas ao regime de protecção temporária, que decorrem já de orientações também que a própria legislação europeia tem vindo a impor neste domínio. Relativamente ao apoio social e ao agrupamento familiar, há também normas clarificadoras do que devem ser os direitos dos requerentes de asilo e dos refugiados, de forma, justamente, a ultrapassar uma das vertentes críticas também do diploma em vigor. No essencial, são estas as principais alterações que serão objecto de uma discussão em sede de especialidade na Assembleia da República e em que, eventualmente, as soluções técnicas propostas, tratando-se de um direito muito especializado, serão, naturalmente, objecto ainda de alguma reflexão em sede adequada, independentemente de eu saber já que a Doutora Luise Drüke tem, seguramente, algumas propostas ainda que serão, certamente, atendidas em sede de debate na Assembleia da República por quem tem responsabilidades nesse domínio por aprovar a nova lei.

Só para concluir, chamaria a atenção para algumas condicionantes da evolução do direito de asilo em Portugal e na Europa, nos próximos tempos, que se prendem sobretudo com o desenvolvimento de uma ideologia securitária na Europa, na sequência do Tratado de Maastricht e da evolução da Convenção de Aplicação de Schengen, bem como a "comunitarização" de algumas das áreas que hoje são reguladas no Terceiro Pilar da União Europeia e que, se a proposta Holandesa em discussão no âmbito da CIG vier a ser aprovada, passarão a ser reguladas no âmbito do I Pilar, estabelecendo-se, por conseguinte, um quadro de decisão que ultrapassa completamente o que tem sido até agora as responsabilidades nacionais na regulação destes direitos. Esta ideologia securitária prende-se, como é óbvio, ao desenvolvimento da livre circulação de pessoas e da associação entre a liberdade de circulação e o reforço da segurança e das condições de controlo nas fronteiras, que é determinado por essa própria percepção e de uma mudança de identificação do inimigo externo por parte da Europa. É um facto que, com o fim da Guerra Fria, a ideologia da segurança externa da Europa foi reconduzida a um modelo de identificação da segurança externa com a segurança interna, em que a pressão demográfica, quer pela desagregação do Bloco de Leste, quer do Sul, pelas condições de desenvolvimento, particularmente preocupantes, das regiões de África, sobretudo, foi transformada, de alguma forma, em inimigo externo principal da Europa. E se o controlo dos fluxos migratórios se tornou o centro das preocupações da segurança da Europa não posso deixar de reconhecer que o Tratado da União Europeia, o Tratado de Maastricht, de alguma forma, consubstancia esta mesma ideologia ao identificar, sobretudo, nos enunciados da segurança do Artigo K1, as questões do asilo e da emigração como questões de interesse comum, da mesma forma que o faz em relação ao crime organizado, à cooperação policial ou à cooperação judiciária. Esta identificação associada dos problemas que têm que ver com o asilo e emigração na Europa, no mesmo conjunto de enunciados que acaba por caracterizar as questões de interesse comum para a segurança interna da Europa, não podia, como é óbvio, deixar de provocar uma leitura de alguma forma perversa da forma como as administrações, as polícias e os decisores políticos têm que, em termos nacionais, regular estes direitos e resolver os conflitos de interesses que se impõem quotidianamente ao decisor político e ao decisor ou ao agente administrativo ou policial. De alguma forma, em Portugal esta situação não podia deixar de se ter agudizado, como é óbvio, se tivermos em consideração que, a partir de Março de 1995, o controle nas fronteiras internas deixou de se efectuar e, por força da aplicação da entrada em vigor da Convenção de Aplicação de Schengen, e a partir desse momento, o campo da segurança interna deixou consideravelmente de ser referenciado pelas coordenadas que até então o regulavam. E é muitas vezes difícil a quem desenvolve um exercício puramente jurídico-formal sobre muitos conflitos de interesses, ter a percepção do que é que, no plano político, e sobretudo no domínio das preocupações dos agentes administrativos e policiais, esta deslocação do campo da segurança interna, provocada pela supressão do controlo da fronteira interna, determina. E muitos dos atritos que quotidianamente nos assaltam, resultam justamente de uma difícil acomodação, que vai ser lenta, necessariamente lenta, entre o campo da segurança interna nacional e o campo da segurança europeia, tal como ele vai sendo designado pela dinâmica de Schengen, pela sua eventual "comunitarização" e, portanto, pela própria dinâmica de construção de um espaço de livre circulação e de segurança na Europa, tal como é formulado hoje na proposta apresentada pela Presidência Holandesa, no âmbito da Conferência Intergovernamental que prevê, justamente, que o Conselho deverá adoptar, no prazo de cinco anos, as medidas necessárias à harmonização legislativa nestes domínios. Não tenhamos nenhuma veleidade relativamente ao estabelecimento de um quadro de regulação destas questões de emigração e asilo, perfeitamente autonomizados do que é esse mesmo quadro nos nossos países vizinhos, sob pena de se criarem desequilíbrios de mercado neste domínio, e termos justamente fluxos migratórios ditados, já não por razões directamente motivadas por acesso ao mercado de trabalho ou por acesso ao exercício de um direito, mas sobretudo pelas vantagens comparativas dos sistemas relativamente uns aos outros. Também neste domínio, independentemente das especificidades constitucionais que estabelecem as garantias ao direito de asilo, ou como, noutro plano, por exemplo, a questão da extradição, há uma dinâmica de harmonização que é absolutamente incontornável, do meu ponto de vista, e que nos obrigará a uma dialéctica entre o sistema constitucional português e o sistema constitucional europeu ou a ordem jurídica europeia.

O que eu desejo relativamente a esta área específica do direito de asilo, é que se o considerarmos justamente como pertencente ao núcleo de princípios e de valores que caracterizam a civilização europeia, enquanto tal, esse esforço de harmonização seja feito tanto quanto possível, pelo nível mais elevado das garantias, da salvaguarda dos princípios que um tal instituto nos deve merecer como identidade da própria civilização europeia e como reserva da humanidade.

Obrigado.

* Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna.