Intervenção no Workshop sobre o Novo Regime Jurídico do Asilo em Portugal
 Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 30 de Maio de 1997
 
Um Conceito Amplo de Refugiado:
 um desafio do tempo presente

 

por José Manuel Pureza*
 
"Não entregarás ao seu senhor o escravo fugitivo que se refugiar em tua casa. Ele ficará contigo, na tua terra, no lugar que tiver escolhido numa das tuas cidades, onde melhor lhe parecer, e não o molestarás." 
 Deuteronómio, 23, 15-16
 

1. A globalização tem muitos rostos. Se a fábrica global e a Wall Street global constituem as suas metáforas mais correntes, também a cidade global, a comunidade global de pessoas, se perfila como um horizonte anunciado no escancarar do mundo trazido pelas técnicas e formatações da globalização.

Aquele que foi talvez o maior profeta da modernidade, Imanuel Kant, prenunciou esta comunidade global de pessoas, fundamentando-a na lei da hospitalidade universal. Para Kant, esse "direito de um estrangeiro a não ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro" radica num "direito de visita, que assiste a todos os homens para se apresentar à sociedade, em virtude do direito de propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual, enquanto superfície esférica, os homens não podem estender-se até ao infinito, mas devem finalmente suportar-se uns aos outros, pois originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra."

Mas o projecto moderno que teve em Kant uma expressão maior é o mesmo projecto que teve no Estado nação e nos direitos nacionais as suas pedras-de-toque jurídico-políticas. A modernidade política subalternizou o ideal kantiano da comunidade humana à sua fragmentação em entidades politicamente diferenciadas e deu lugar à construção de um sistema europeu de Estados soberanos. A canonização deste modo fragmentado de conceber a organização jurídico-política da comunidade humana passou, justamente, pela regra fundamental do reconhecimento a cada Estado quer do direito exclusivo de fixar uma definição jurídica precisa da nacionalidade, quer do controle igualmente exclusivo da população colocada sob sua autoridade (CHEMILLIER-GENDREAU, 1995: 166). Passaporte, visto, autorização de trabalho e de residência passam a integrar assim o elenco dos fetiches do poder do Estado nação moderno.

O Direito Internacional tem sido um palco privilegiado desta contradição funda do projecto moderno. O seu fio condutor tem sido sempre essa luta persistente entre a normatividade autónoma da comunidade internacional e a vontade/autoridade soberana dos Estados individuais. Em outras ocasiões (PUREZA, 1995) tenho analisado esta tensão em termos de uma transição paradigmática que nos conduz de um Direito Internacional ratificador da autoridade estatocêntrica a um Direito Internacional emancipatório e antecipador da comunidade humana.

No domínio específico do tratamento das pessoas, o classicismo estatocêntrico de que somos herdeiros traduz-se numa tradicional blindagem das soberanias, na perspectivação do funcionamento de cada Estado como assunto interno escudado pela protecção do chamado "domínio reservado" e pela consequente indiferença normativa do Direito Internacional ao tratamento conferido por cada Estado aos seus nacionais e, de um modo geral, também aos estrangeiros nele localizados. O nosso século tem sido a demonstração cruel dos limites desta identificação da pessoa com o cidadão/súbdito do Estado. Fazendo depender, em absoluto, o direito a ter direitos do vínculo da nacionalidade, o Direito Internacional tradicional atira para a margem milhões de vítimas - as displaced persons - transformadas em algo de absolutamente supérfluo (LAFER, 1989).

Certo que um dos fenómenos mais marcantes do nosso tempo tem sido a consolidação de um discurso ideológico e jurídico de igualdade. Os princípios básicos da igualdade de direitos de todos os seres humanos, núcleo fundamental dos direitos humanos, e da igualdade de direitos de todos os povos, inscritos nos propósitos básicos das Nações Unidas, são os pilares de um novo olhar normativo sobre a realidade internacional.

Mas a esse discurso igualitário e emancipatório contrapõe-se uma prática secular de diferenciação e hierarquização de pessoas e de grupos e uma tradição de exclusão em larga escala.

2. O direito do movimento e da circulação tem sido uma expressão evidente dessa prática de diferenciação.

O dogma da livre circulação tem sido invariavelmente materializado em práticas beneficiadoras dos países desenvolvidos, sem requisitos de reciprocidade. É assim, desde logo, com as mercadorias e com os capitais, para os quais a expressão 'circulação' aparece como uma ironia com que se pretende camuflar aquilo que são, de facto, vias de sentido único. E a mesma assimetria caracteriza, desde sempre, os movimentos de pessoas. Também aqui a diferenciação é lei histórica, com a ausência de limites ao acesso de cidadãos dos países ricos ao território dos que não o são a contrapor-se à manipulação - em termos de oscilação entre abertura (ou mesmo atracção) e controle e fechamento - dos fluxos migratórios do Sul para o Norte.

O Direito Internacional é, pois, também aqui, campo de duas tensões que se cruzam. Por um lado, a tensão entre territorialismo excluente e comunitarismo cosmopolita; por outro, a tensão entre preservação da hegemonia económica e política do Ocidente industrializado e formas de regulação antecipadoras de simetria, reciprocidade e igualdade universais.

Sobre este pano de fundo, é possível assinalar que muitas das brechas introduzidas no estatismo aniquilador da dignidade dos cidadãos, não obstante a importância histórica e conceptual que lhes advém de se terem assumido como rupturas da blindagem dos "Estados-caixas negras", foram afinal brechas de alcance limitado, justamente porque se contiveram dentro dos parâmetros de regulação convenientes à hegemonia do clube dos países ricos. E é possível concluir, de seguida, que a verdadeira ruptura se regista apenas quando esses limites são confrontados com as exigências de igualdade clamadas pela periferia do sistema mundial.

3. Assim, a prática ancestral em matéria de asilo, seja sob a forma de asilo territorial seja de asilo diplomático, reflecte claramente um período em que a regulação da protecção de pessoas alvo de perseguição era absolutamente monopolizada pelo Estado. Como é sabido, nem mesmo a redacção do art. 14 n 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos - "Em caso de perseguição, qualquer pessoa tem o direito de procurar asilo e a beneficiar dele em qualquer país" - rompeu com este protagonismo exclusivo dos Estados. Sendo a proclamação do direito fundamental ao asilo desacompanhada da atribuição do correspondente dever a nenhum Estado em particular, torna-se logo evidente que a concessão de asilo é uma prerrogativa do Estado, no exercício das suas competências soberanas (GALINSOGA, 1994: 47).

O estatocentrismo característico do asilo revelou-se insuficiente para responder aos fenómenos de formação de grandes massas humanas em fuga dos respectivos Estados de nacionalidade. Progressivamente, a comunidade internacional foi positivando fórmulas alternativas, começando por ater-se à caracterização do refugiado como membro de um grupo humano determinado que, em virtude de acontecimentos concretos, carece de protecção do seu Estado de origem.

A Convenção de Genebra de 1951 relativa ao Estatuto de Refugiado constitui um alargamento importante desta perspectiva inicial. O art. 1 A da Convenção define o refugiado como toda aquela pessoa que "receando com fundamento ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país; ou que, se não tiver a nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua residência habitual (...), não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar".

À luz do cruzamento de tensões atrás enunciado, a noção de refugiado incluída na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967 merece uma tripla qualificação.

Em primeiro lugar, ela representa uma quebra assinalável do estatocentrismo absoluto. Ao contrário da natureza estatista do asilo, o estatuto de refugiado procura apresentar-se como uma categoria objectiva, directamente decorrente dos instrumentos jurídicos internacionais em que está consagrada. A tal ponto que qualquer decisão fundada nesses instrumentos terá um carácter meramente declarativo.

Em segundo lugar, a definição de refugiado incluída na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967 é limitada a pessoas que temem a violação de um reduzido espectro de direitos humanos - perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a um determinado grupo social ou opinião política. Acolhe, pois, neste sentido, um critério de definição restritivo que valoriza os direitos civis e políticos como fundamento único da concessão do estatuto de refugiado. Essa valorização tem uma contra-face: a ignorância dos direitos económicos, sociais e culturais como integrantes da dignidade humana mínima.

Em terceiro lugar, esta centragem sobre a violação dos direitos civis e políticos, articulada com uma razoável margem de indeterminação dos pressupostos de atribuição do estatuto de refugiado ("receio", "receio fundado", "perseguição") permitiram que, durante três décadas, a definição restritiva de 1951 funcionasse como mecanismo de grande utilidade para o Ocidente desenvolvido. Por um lado, utilizando essa indeterminação para aceitar tacitamente a ampliação de tarefas do ACNUR no Terceiro Mundo, delegando nele, à distância, a tarefa de gestor dos "sub-produtos" indesejáveis e incómodos das guerras de libertação nacional em África e na Indochina. Por outro lado, manejando com grande flexibilidade táctica essa mesma indeterminação para sustentar a atracção de mão-de-obra barata proveniente do Terceiro Mundo para um Ocidente então em fase de expansão económica. E, por fim, instrumentalizando politicamente a gestão interpretativa daquela noção restrita à estratégia da Guerra Fria. Deste ponto de vista, a prática dos Estados Unidos é paradigmática. Desde logo, a sua especial generosidade no acolhimento de 400.000 pessoas deslocadas da Europa do segundo pós-guerra, de 38.000 húngaros da Áustria entre 1956 e 1958, e de cerca de 500.000 indochineses entre 1975 e 1980 está em manifesta relação directa com a preocupação da superpotência pelos efeitos desestabilizadores de largas massas de refugiados em zonas do seu interesse estratégico vital. É igualmente significativa a prática desigual seguida em relação a distintas proveniências geopolíticas. Da revolução castrista a 1980 foram admitidos mais de 800.000 cubanos como refugiados nos Estados Unidos porque eram vistos como "votando com os seus pés contra o comunismo". Mas já os requerentes haitianos durante a ditadura de Papa Doc Duvalier, os chilenos fugidos a Pinochet ou os opositores a Ferdinando Marcos viram os seus pedidos de asilo normalmente recusados pelas autoridades americanas. E ainda na década de 80 essa prática discriminatória se mantinha reiterada. Um estudo de 1987 do US General Accounting Office comparando a abertura a pedidos provenientes de quatro países (El Salvador, Nicarágua, Polónia e Irão) evidenciava que, com os mesmos fundamentos - receio de detenção abusiva, tortura ou eliminação física - as taxas de concessão de asilo eram de 64% para iranianos, 55% para polacos, 7% para nicaraguenses e 3% para salvadorenhos (LOESCHER, 1993: 104).

Este é apenas um exemplo de como, no contexto da Guerra Fria, os Estados puderam invocar uma espécie de presunção de não perseguição quanto aos pedidos de asilo provenientes de países do mesmo bloco e de uma presunção de perseguição em pedidos oriundos do bloco oposto (CHEMILLIER-GENDREAU, 1995: 167).

4. As décadas de oitenta e noventa puseram a nu os limites da construção excluente e restritiva em que tem assentado o regime internacional dos refugiados desde a Convenção de 1951.

Os dados são conhecidos. O crescimento do número de refugiados no mundo é explosivo: 2,5 milhões em 1970, 8,2 milhões em 1980, mais de 15 milhões em 1995; a que se acrescentam cerca de 25 milhões de deslocados internos. Mas estes valores ganham outro sentido quando devidamente contextualizados. A população mundial atingirá os 11.000 milhões em meados do próximo século, sendo que 95% do crescimento populacional ocorrerá no Terceiro Mundo. Mais rigorosamente, as estimativas para 2025 apontam para um crescimento de 1,2 mil milhões de habitantes nos países industrializados, e de cerca de 7.000 milhões no Terceiro Mundo.

Não surpreende que já hoje a parcela do sistema de fluxos mundiais de refugiados coberta pelos países pobres seja largamente maioritária. Desde logo, em termos de origem dos fluxos. Mas também em termos de responsabilidades de acolhimento e protecção internacional: a Europa acolhe 2,5 milhões de refugiados, enquanto a África acolhe 5,2 milhões e a Ásia 7,3 milhões. Na lista de países que, em proporção com a sua população, suportam mais encargos com refugiados, encontram-se à cabeça a Jordânia (relação de 1 para 3), a Guiné (1/10), o Líbano (1/11), a Arménia (1/12) e Belize (1/23). Nenhum país desenvolvido figura entre os 25 integrantes dessa lista. Um país como o Malawi, que figura na lista dos 40 países menos avançados, tem dado acolhimento a 1,3 milhões de refugiados moçambicanos.

Este quadro evidencia a crise do regime assente na definição e nos pressupostos contidos na Convenção de 1951 e no Protocolo de 1967 (SANTOS, 1995: 301). Há um último dado que reforça ainda mais este diagnóstico de crise: a proporção dos considerados como "refugiados genuínos", segundo o critério da perseguição pessoal da Convenção de 1951, sobre o total dos que buscam refúgio desceu de 50% no início dos anos oitenta para menos de 20% no fim da década (LOESCHER, 1993: 125).

Quer dizer, os factos já não se reconhecem mais inteiramente nos critérios selectivos dos textos jurídicos internacionais: a fome, as catástrofes naturais, os desastres ecológicos não são fenómenos claramente dissociáveis da guerra civil ou da repressão política ou mesmo da falência do Estado, enquanto motivações da fuga e da procura de refúgio. Na prática quotidiana, as situações não se apresentam contrastadas, a preto e branco, ora revendo-se integralmente no critério da perseguição individual prescrito pela Convenção, ora afastando-se dele em absoluto. Na grande maioria dos casos actuais, há uma mistura indivisível entre motivações económicas e políticas. Os boat people que buscam os portos italianos vindos da Albânia ou os portos americanos vindos do Haiti vêm carregados dessa mistura e, com ela, da denúncia de insuficiência dos mecanismos jurídicos pensados há 46 anos.

A resposta dominante a este espaço de indefinição, tem sido a instalação de políticas nacionais e regionais francamente restritivas, alimentadas pela recessão das economias dos países centrais. Quer dizer, é precisamente porque o propósito regulador do mecanismo criado em 1951 é transportado para um novo contexto, atravessado desta vez por uma nova linha de fractura - já não a ideológica que se materializava no cumprimento ou violação dos direitos civis e políticos, mas a económico-social que se exprime na satisfação ou não do imperativo da indivisibilidade dos direitos humanos - que ele revela as insuficiências da definição politicamente selectiva que lhe subjaz. Puxado para o âmago da contradição entre centro e periferia do sistema mundial, o regime dos refugiados vê-se agora alvo de reticências e de extremas cautelas pelos países do centro, outrora os paladinos da justeza desse mesmo regime. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..." Neste novo quadro, volta a autoridade soberana a ter primazia sobre a unidade da comunidade global de pessoas, a óptica da territorialização a ganhar ascendente sobre a óptica dos direitos humanos.

5. A moda restritiva que marca actualmente as políticas europeias e norte-americanas não é a única alternativa. Como sublinhou a Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados no documento apresentado à 46. Sessão do Comité Executivo do ACNUR sobre "Protecção Internacional em Situações de Êxodo em Massa", "para assegurar uma protecção internacional efectiva, as estratégias novas ou complementares devem procurar: a) reforçar, em primeiro lugar, a implementação da Convenção de 1951, do Protocolo de 1967 e dos instrumentos regionais existentes; b) reforçar a protecção dada a pessoas que se encontram fora do âmbito de aplicação dos instrumentos jurídicos tradicionais; c) apoiar as medidas de protecção adoptadas pelos Estados que ainda não fazem parte desses instrumentos". E acrescenta que "o objectivo é reforçar o compromisso dos Estados em assegurar que as pessoas que requerem protecção a recebam sem discriminação" (ACNUR, 1995: par. 8).

Para aquele reforço da protecção a pessoas excluídas formalmente dela pela redacção do art. 1A da Convenção de 1951 convergem três caminhos principais.

O primeiro caminho é o da interpretação actualista da noção de refugiado. Ao dever geral de protecção e, em geral, ao regime internacional dos refugiados podem acolher-se quer as vítimas efectivas de perseguição, quer ainda as vítimas potenciais, segundo a letra do texto de 1951. Mas é ainda juridicamente válido o juízo de inclusão das vítimas indirectas no regime e nos direitos e obrigações inerentes: quer as pessoas afectadas por uma relação pessoal com as vítimas directas (em virtude do princípio da unidade familiar) quer ainda as pessoas que sentem as suas vidas ou a sua liberdade ameaçadas como consequência de uma situação de violência generalizada (FERNANDEZ SANCHEZ, 1994: 28).

É nesse sentido que vão dois importantes instrumentos regionais. A Convenção da Organização de Unidade Africana sobre aspectos específicos dos problemas dos refugiados em África, de 10 de Setembro de 1969, amplia a definição de 1951 e abarca "toda a pessoa que, devido a agressão externa, ocupação, domínio estrangeiro ou grave perturbação da ordem pública em todo ou numa parte do país de origem (...) se vê obrigada a abandonar a residência habitual para procurar refúgio em outro lugar fora do país de origem ou de cidadania".

Por seu lado, a Declaração de Cartagena sobre os Refugiados, adoptada por representantes latino-americanos em 1984, agrega àquelas causas de concessão do estatuto de refugiado a "violação sistemática dos direitos humanos".

E também a Declaração de Sevilha sobre Refugiados e Solidariedade Internacional, adoptada em Fevereiro de 1994, num colóquio universitário idêntico ao que hoje aqui realizamos, proclama que "na comunidade internacional contemporânea, são titulares do direito a procurar protecção internacional não só as pessoas que tenham fundado receio de serem perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opiniões políticas, que se encontrem fora do país de que têm nacionalidade e não possam ou, em virtude daquele receio, não queiram pedir a protecção daquele país, mas também todas as pessoas que devido a conflitos armados ou acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública, em todo ou em parte do seu país de origem, nacionalidade ou residência habitual, se vejam obrigadas a abandonar o referido local para procurar refúgio e protecção".

O segundo caminho é o da inclusão, quer doutrinal quer institucional, das situações de deslocações forçadas de grandes massas humanas no elenco das condições da paz a que se abre a Carta das Nações Unidas. Neste sentido, não só cabe considerar as situações graves e maciças de deslocações forçadas (vítimas de guerras e de violência generalizada) como ameaças à paz, como tal abordáveis pelo Conselho de Segurança ao abrigo dos arts. 39 e 40 da Carta, como também enquadrar inúmeras situações de migração económica (vítimas de pobreza e de miséria) no âmbito de aplicação dos arts. 55 e 56 da Carta, ou seja, no domínio da solução de problemas internacionais de carácter económico e social, segundo um prisma de equidade e de solidariedade internacional (burden sharing) (CARRILLO SALCEDO, 1994: 184).

Vai nesse rumo a referida Declaração de Sevilha, ao estabelecer que "a Assembleia Geral, o Conselho Económico e Social e o Conselho de Segurança das Nações Unidas (...) deveriam exercer as suas competências a fim de formular os princípios mínimos, de carácter fundamental, de um novo regime de protecção internacional de todos os grupos humanos ameaçados pela violência e a miséria (...). Este regime de protecção, parte integrante de um mecanismo internacional para promover o progresso económico e social de todos os povos (...) deveria instaurar um sistema de segurança colectiva com equitativa repartição de custos, de tal modo que os Estados que mais encargos assumem, contem com a assistência solidária da comunidade internacional".

O terceiro caminho consiste na visibilização da cultura de direitos humanos como fundo indisponível em que se inscreve toda a abordagem jurídica do fenómeno das migrações e sobretudo das deslocações forçadas.

Expressão específica maior deste entendimento é o carácter imperativo do princípio da não devolução (non refoulement) contida no art. 33 da Convenção de 1951, e o seu desdobramento no que bem pode ser tido como um código mínimo do Direito Internacional dos Refugiados: manutenção no país de acolhimento, em condições de vida decentes, durante toda a tramitação conducente à concessão de asilo ou ao reconhecimento do estatuto de refugiado; possibilidade de recurso judicial de decisões negativas; concessão de um prazo razoável para retomo em caso de decisão negativa; e, em geral, proibição de reenvio para um país em que a vida, a liberdade, ou outros direitos fundamentais do requerente estejam em perigo.

É ainda neste registo que se coloca a mesma Declaração de Sevilha, ao determinar que o fundamento geral da obrigação de não devolução é a obrigação internacional dos Estados de "não procederem ao controlo da imigração de forma incompatível com o respeito dos direitos humanos fundamentais".

Se a tensão entre direitos humanos e soberania dos Estados é anunciadora de uma nova lógica de regulação jurídica internacional, a abertura e a recontextualização da definição de refugiado pode assumir-se como uma importante peça desse combate, contraposta às restrições tecnocráticas ou chauvinistas. Por aí passa, portanto, uma genuína nova ordem internacional, ousadamente comprometida com a salvaguarda da dignidade de todos.

Bibliografia

 


* Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.