Intervenção no Workshop sobre o Novo Regime Jurídico do Asilo em Portugal
 Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 30 de Maio de 1997
 
Refugiados como Problema Internacional depois da Guerra Fria
 
por João Gomes Cravinho*
 
Uma das faces mais visíveis da desordem internacional que actualmente se vive é o crescimento descontrolado do número de refugiados espalhados pelo mundo nos últimos anos, e as dificuldades que têm travado tentativas de encontrar soluções justas e coerentes para combater os dramas com que somos confrontados quase que cada vez que ligamos o televisor. Dito isso, a desordem internacional pode ser exactamente o momento mais propício para o desenvolvimento de novas soluções mais consensuais e acima de tudo mais adequadas para lidar com os verdadeiros contornos de crises de refugiados. A desordem tem custos elevados para o sistema internacional, e acima de tudo para as vítimas do sistema internacional, mas quando comparamos com algumas formas de ordem, a desordem pode ser preferível. A anterior ordem internacional, caracterizada pelo domínio da confrontação bipolar entre os Estados Unidos e a União Soviética era uma ordem com gravíssimos custos para grupos populacionais obrigados a fugir do seu local de domicílio preferencial. Nesse sentido há boas razões para considerar que a desordem que acompanha o fim da Guerra Fria é uma oportunidade para tentar corresponder às necessidades prementes daqueles que são marginalizados por forças geopolíticas muito para além do seu controle.

Grande parte das emergências humanitárias que surgiram durante a Guerra Fria resultaram directamente da própria Guerra Fria. Frequentemente as superpotências contribuíam directa ou indirectamente para aliviar os problemas dos refugiados mas eram simultaneamente directa ou indirectamente responsáveis pelas crises que criavam esses mesmos refugiados. Enquanto que por um lado ofereciam apoio material ou logístico aos esforços internacionais para atenuar crises de refugiados, por outro lado ofereciam também apoios aos senhores de guerra que atiravam pessoas aos milhares para a condição de refugiados. Acresce-se a este problema o facto de a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança das Nações Unidas agirem em consequência de considerandos geoestratégicos da Guerra Fria e não em consequência das dificuldades dos refugiados.

Só para referir alguns exemplos, as guerras em Angola, Afeganistão, Cambodja, E1 Salvador, Guatemala e Nicarágua eram guerras criadas ou exacerbadas pela confrontação global entre os Estados Unidos e a União Soviética. As superpotências eram portanto partes activas na criação de centenas de milhares de refugiados pelo mundo fora, mesmo que depois, num ataque de remorsos viessem a oferecer apoio humanitário às populações afectadas.

A seguir ao fim da Guerra Fria havia esperanças de se poder mobilizar a sociedade internacional para lidar com este tipo de problema. As expectativas não foram totalmente defraudadas - houve de facto algumas mudanças importantes - mas também é verdade que a realidade permanece bastante aquém das possibilidades. Proponho fazer dois ou três comentários sobre as mudanças e sobre os limites dessas mudanças.

Uma primeira mudança reside no aumento de operacionalidade das Nações Unidas e das agências das Nações Unidas. Até 1989 as agências das Nações Unidas respeitavam escrupu1osamente o princípio da soberania dos Estados membros, isto é, só actuavam mediante a autorização dos governos internacionalmente reconhecidos. Antes de 1989 algumas ONGs trabalhavam em áreas sob controle de movimentos rebeldes, naturalmente com autorização dos rebeldes, uma via que estava interdita às agências das Nações Unidas. A começar com o Sudão em 1989 a Assembleia Geral passou gradualmente a autorizar que as agências da ONU começassem a negociar directamente com os detentores do poder político no terreno - sejam governos ou movimentos rebeldes - para ter acesso a populações de refugiados. Considero que isto é um passo extremamente positivo porque a ficção jurídica da universalidade do princípio de soberania era um entrave muito sério para a ajuda humanitária. Apenas permitia o apoio a refugiados quando isso interessava aos governos e transformava o apoio humanitário numa arma política. Uma das características de guerras civis da última década ou duas é a clara falência da autoridade do Estado mesmo em terreno que controla militarmente. Se pensarmos por exemplo na guerra civil em Moçambique vemos que durante vários anos o Estado foi totalmente incapaz de oferecer garantias de segurança de vida aos seus cidadãos, excepto em pequenas áreas à volta de algumas cidades. Igualmente no Afeganistão ou na antiga Jugoslávia verificamos as dificuldades que resultam do pressuposto que o Estado deve ser o único interlocutor das agências internacionais. Na Somália assistimos à desintegração total do estado, o que pelo menos teve o mérito de tornar impossível a manutenção deste princípio de actuação.

O princípio da soberania dos Estados era portanto uma dos maiores barreiras para a vontade de fazer chegar auxílio internaciona1 a populações necessitadas. A flexibilidade que hoje existe no tratamento desta questão pode ter repercussões complexas no sistema internacional de Estados, mas representa sem dúvida uma vitória da acção internacional humanitária contra a monopolização do poder por parte de quem contribui para a existência de terríveis crises humanitárias. O Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que fala de segurança colectiva, tinha em mente conflitos tradicionais entre Estados, mas penso que a tendência actual para estender a noção de segurança colectiva para incluir guerras civis é positiva e deve ser acelerada. A revisão da Carta das Nações Unidas actualmente em curso é um momento privilegiado para o desenvolvimento de ideias muito mais abrangentes sobre segurança colectiva.

Infelizmente este passo positivo não resolve outro problema que é a necessidade de ter autorização de quem controla o terreno e portanto continua a ser essencial manter um olho na lógica política de negociação de interesses. O exemplo recente dos terríveis abusos contra populações refugiadas cometidas pelas tropas de Laurent Kabila no Leste do Zaire obriga a reflectir sobre a possibilidade de mecanismos para retirar o poder de veto às forças militarizadas no terreno.

No mesmo sentido penso que deixa de fazer sentido a distinção tradicional entre populações de refugiados e de deslocados. Refugiados, tradicionalmente, eram apenas aqueles que atravessavam fronteiras internacionais. Em guerras civis normalmente não há diferença nenhuma nas dificuldades e nas condições de vida de refugiados que por acaso atravessam uma fronteira e refugiados que por acaso não atravessam uma fronteira. O estatuto jurídico destes dois tipos de população é no entanto diferente, por razões enraizadas no princípio de soberania, mas o resultado é quase sempre perverso. Importa encontrar um novo regime internacional que permita o apoio a populações refugiadas irrespectivamente delas atravessarem ou não fronteiras internacionais. A segurança colectiva internacional não é apenas posta em causa quando por acaso refugiados atravessam uma fronteira. Há muito que ONGs deixaram de prestar atenção a esta distinção - excepto por razões de financiamento - e fazem elas muito bem. Nos últimos anos as agências internacionais como o ACNUR e a Comissão Europeia contribuíram em muito para atenuar as diferenças de tratamentos entre refugiados e deslocados internos, mas penso que há ainda muito caminho a fazer para responder a situações de injustiça gritantes.

Umas palavras sobre sistemas de alerta prévio. Uma das grandes esperanças do fim da Guerra Fria era a possibilidade não só de acudir a emergências de refugiados mas de evitar que surgissem essas crises através de mecanismos de alerta prévio e de diplomacia preventiva. Aqui há que distinguir entre dois sistemas de alerta. Um tipo de sistema chama a atenção para a probabilidade de fluxos de refugiados e permite às ONGs e às agências internacionais uma resposta atempada aos dramas dessas populações. Outro tipo de sistema de alerta chama a atenção para conflitos latentes ou emergentes que podem vir a motivar movimentos de refugiados. Ambos são importantes mas requerem mecanismos diferentes.

Nos últimos anos as agências internacionais têm vindo a desenvolver de forma bastante intensa redes de informação sobre refugiados e têm maior capacidade de responder atempadamente às necessidades das populações deslocadas. Naturalmente que isto é importante mas não evita o facto de continuarem a ser obrigadas a negociar o acesso com os chefes da guerra nas regiões afectadas. Mesmo com todas as fontes de informação que hoje podem ser mobilizadas - informação por satélite, por exemplo - o beneplácito dos chefes de guerra continua a ser incontornável. Mais uma vez o exemplo recente do Leste do Zaire é relevante: por causa das maquinações de Laurent Kabila houve um período de cerca de uma semana em que ninguém sabia do paradeiro de um grupo de várias dezenas de milhares de refugiados, e milhares morreram por causa do tempo que levou para que a Comunidade internacional conseguisse orquestrar pressão suficiente para obrigar Kabila a permitir o acesso. Este tipo de situação não deveria ocorrer e chama a atenção para a necessidade e obrigação de mecanismos de intervenção mais coercivos. Vale a pena registar aqui uma palavra de homenagem à coragem da Comissária Emma Bonino que contra muitos interesses profundamente enraizados chamou a atenção do mundo para este problema e dessa forma contribuiu para que não viesse a ter dimensões ainda mais trágicas.

Quanto aos mecanismos de alerta prévio de conflitos passíveis de criar grandes fluxos de refugiados, podem-se registar alguns sucessos mas talvez menos do que seria legítimo esperar. A OSCE teve um papel de grande importância na Macedónia, impedindo que o conflito da antiga Jugoslávia se alastrasse ainda mais; a OUA teve um papel muito importante na mediação de uma crise em 1993 no Congo (Brazaville); há mais alguns exemplos de sucessos da diplomacia preventiva mas a lista de insucessos é infelizmente muito mais extensa. Muitos países e organizações sentem relutância em se envolver em conflitos numa fase precoce, uma relutância que por vezes é bem fundamentada mas que na maior parte dos casos resulta de inércia. A inércia parece muitas vezes ser o caminho mais fácil e menos custoso, até porque uma crise que ainda não o é não tem aquelas imagens terríveis na televisão que por vezes são essenciais para obrigar estados e organizações a tomar uma atitude.

Por último, seria irrealista pensarmos que a intervenção pretensamente humanitária não vem por vezes carregada de interesses. Talvez o exemplo mais terrível e mais cínico deste tipo de actuação foi o apoio dado pela França ao genocídio da população Hutu no Ruanda em 1994. Convém não esquecermos que as potencialidades que se nos oferecem actualmente para repensarmos princípios básicos de direitos e deveres humanitários oferecem também oportunidades para os mais primitivos instintos em nome de alguma suposta raison d'état.

* Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.