Nos últimos anos, assistimos à combinação
de uma diversidade de diferentes factores que desencadeou uma reavaliação
e revisão da abordagem tradicional dos problemas dos refugiados.
Algumas das forças mais relevantes são identificadas a seguir:
A nova desordem
internacional
O fim da Guerra Fria gerou um forte sentimento de optimismo relativamente à situação internacional dos refugiados. Com o fim da rivalidade entre as superpotências pensou-se que muitos conflitos seriam resolvidos, um grande número de refugiados poderia regressar a casa e os recursos utilizados para lhes prestar assistência poderiam ser libertados e canalizados para a reabilitação e para o desenvolvimento.Na realidade aconteceu quase o contrário. Acordos de paz relativamente bem sucedidos (ainda que frágeis) em países como o Camboja, El Salvador e Moçambique parecem agora ser mais a excepção do que a regra e foram ensombrados por uma série de novas e graves situações de emergência humanitária, em regiões como os Balcãs, o Cáucaso e a África Central e Ocidental. As organizações vocacionadas para os problemas dos refugiados e as agências humanitárias têm reconhecido a sua dificuldade - e nalguns casos incapacidade - em dar resposta a estas crises.
Este reconhecimento, juntamente com a crescente preocupação por parte dos países industrializados em relação ao número de requerentes de asilo, oriundos das regiões menos desenvolvidas, que chegam ao seu território (mais de 1.5 milhões nos últimos três anos) tem contribuído para a percepção de que o problema global dos refugiados está a fugir ao controlo. Embora as estatísticas mais recentes mostrem uma queda no número de novas chegadas à Europa Ocidental, os governos não deixaram quaisquer dúvidas sobre a sua determinação em procurar novos métodos de controlar e reduzir aquilo que entendem como um influxo exagerado e inaceitável.
A inadequação das respostas tradicionais
As soluções tradicionais para o problema dos refugiados têm, em muitos casos, demonstrado ser inadequadas para responder às actuais necessidades.
A experiência recente tem mostrado que o repatriamento voluntário pode ser muito difícil e dispendioso de organizar e pode nem sequer ser possível quando os países de origem em questão continuam a ser afectados pelo prolongamento de conflitos, devastação económica ou por um legado de guerra. Relativamente poucos países de acolhimento estão actualmente dispostos a considerar a integração a longo prazo ou mesmo temporária de populações de refugiados numerosas. Por outro lado, a reinstalação num terceiro país apenas se encontra acessível a uma pequena percentagem de refugiados em todo o mundo.
Existe actualmente um reconhecimento crescente de que a resposta mundial aos movimentos de refugiados durante os anos 70 e 80 pode, de facto, ter contribuído para a dimensão que o problema alcançou nos anos 90. Por exemplo, o programa de reinstalação em terceiros países dos "boat-people" vietnamitas e os programas de assistência de longa duração, abrangendo muitos refugiados em África, continuam a impedir a procura de soluções nessas regiões.
Ao mesmo tempo, ocorrem novas deslocações da população,
para as quais nenhuma das soluções tradicionais parece ser
adequada. O que acontecerá, por exemplo, aos muçulmanos e
croatas deslocados cujos bens e casas foram confiscados por sérvios,
ou ao grupo étnico Azeri de Nagorno-Karabaj cujo território
continua sob ocupação arménia? E que tipo de soluções
estarão disponíveis para o cada vez maior número de
pessoas deslocadas no seu próprio país? Poderão eventualmente
regressar às comunidades de onde saíram, ou terão
que ser concebidas soluções alternativas?
A inquietação dos países doadores
Os países industrializados, que contribuem com a maior parte dos fundos necessários para a assistência às pessoas deslocadas, estão cada vez mais ansiosos por encontrar novas soluções para o problema dos refugiados. Para além dos 1.3 biliões de dólares absorvidos pelo ACNUR em 1994, grandes quantidades de recursos financeiros são também canalizados para os refugiados através de outras organizações internacionais como o Programa Mundial para a Alimentação (PMA), o Comité Internacional da Cruz vermelha (CICV), bem como através de organizações não governamentais e programas de assistência bilateral.
De acordo com alguns relatórios, os gastos dos países
doadores atingiram 2 biliões de dólares nas primeiras duas
semanas da crise de refugiados do Ruanda, em meados de 1994. Embora uma
percentagem deste montante tenha sido, sem dúvida, compensada pelos
orçamentos regulares da defesa e do apoio ao desenvolvimento, este
valor dá alguma indicação dos enormes custos implicados
na resposta (e não na resolução) a uma grave situação
de emergência.
Preocupações dos países de acolhimento
Sentimentos semelhantes têm sido expressos pelos países mais directa e gravemente afectados pelo problema da deslocação em massa de populações - os países menos desenvolvidos que acolhem a vasta maioria dos refugiados do mundo. Muitas destas sociedades são confrontadas com um núcleo de problemas inter-relacionados que têm vindo a piorar acentuadamente - economias estagnadas ou em declínio, populações em rápido crescimento, degradação ambiental, aumento da competitividade em relação aos empregos disponíveis e à posse da terra, níveis de criminalidade crescentes e o aumento de tensões sociais. Nalguns casos estas dificuldades são exacerbadas (pelo menos a curto prazo) por programas de ajustamento estrutural que colocam sérias limitações ao crescimento da despesa pública destinada aos salários e à segurança social.
Compreende-se que os países que se encontram nesta situação
e que têm tradicionalmente mantido uma política de porta aberta
aos refugiados, comecem agora a pensar se não é já
tempo de uma nova abordagem para o problema da migração forçada.
Nas palavras de um funcionário de Goma, a cidade zairense para onde
centenas de milhar de ruandeses fugiram durante 1994, "os refugiados
têm um comportamento cultural e ético diferente. Andar armado
e matar são atitudes bastante comuns entre eles, o mesmo se aplica
ao roubo e ao desrespeito pela propriedade alheia. A população
refugiada sobrecarregou os recursos zairenses, destruiu o ambiente, introduziu
uma inflação descontrolada no mercado e abusou da nossa hospitalidade.
Queremo-los fora daqui rapidamente".
A alteração dos interesses estratégicos
Durante a Guerra Fria, as superpotências e os seus aliados nas regiões menos desenvolvidas tinham um interesse estratégico nos refugiados - um interesse que contrabalançava os custos decorrentes da concessão de asilo e da prestação de assistência. Nalgumas situações, tal como o êxodo dos "boat people" vietnamitas nos anos 70 e 80, um fluxo de refugiados podia ser utilizado para desacreditar o governo do país de origem e promover a imagem dos países que lhes concediam asilo. Noutras situações, de que são exemplo, os Contras da Nicarágua nas Honduras, os mujahideen no Paquistão e os exilados namibianos em Angola, os países mais poderosos podiam tirar partido de movimentos de refugiados, armando e treinando algumas destas pessoas para desestabilizar o governo no seu próprio país.
A experiência recente no Ruanda e na ex-Jugoslávia demonstrou
que os dias dos refugiados política e militarmente activos estão
longe de ter terminado. Mesmo assim, com o fim do sistema bipolar e a resolução
da maioria dos conflitos regionais associados ao período da Guerra
Fria, as populações de refugiados têm agora um significado
estratégico mais limitado e localizado.
O colapso das categorias convencionais
A escala e complexidade crescentes da migração involuntária tornaram cada vez mais difícil manter a distinção rígida, que as organizações humanitárias têm tradicionalmente feito entre refugiados, retornados, pessoas deslocadas internamente e população residente. Por exemplo, nas áreas fronteiriças de países como a Libéria, a Serra Leoa ou a Somália, é possível encontrar pessoas de todos estes grupos, vivendo lado a lado em circunstâncias indistintas. Um indivíduo ou família podem mesmo transitar de uma para outra destas categorias, em função da alteração das suas circunstâncias e estratégias de sobrevivência.
Os acontecimentos na ex-Jugoslávia constituem outra demonstração clara da ruptura com as categorias convencionais. Por exemplo, o ACNUR, tem sido sempre descrito como uma organização vocacionada para os refugiados, apesar de nos últimos anos se ter envolvido cada vez mais nos problemas das pessoas deslocadas internamente. Na Bósnia-Herzegovina este processo avançou mais um passo, daí resultando que o ACNUR forneça actualmente, alimentos e outro tipo de assistência a milhares de pessoas que se encontram cercadas nas suas próprias comunidades e que, consequentemente, não têm qualquer mobilidade. Simultaneamente, a desintegração do Estado jugoslavo e o conflito, que se lhe encontra associado, entre diversas das repúblicas sucessoras, torna confuso o estatuto jurídico de muitas pessoas deslocadas que se encontram naquela região.
Em resultado destes desenvolvimentos, existe agora uma tendência
crescente quer por parte dos analistas, quer por parte das agências
operacionais, para insistirem menos na definição contida
na Convenção das Nações Unidas de 1951 relativa
ao Estatuto do Refugiado e para se referirem, em termos mais gerais, a
pessoas deslocadas, populações desenraizadas e migrantes
involuntários. Esta prática foi também adoptada nos
capítulos seguintes deste livro.
Novas noções de segurança
O fim da Guerra Fria e outros desenvolvimentos internacionais recentes deram lugar a uma redefinição das noções de segurança nacional e internacional. Durante a era da rivalidade entre as superpotências, os políticos e estrategas de ambos os lados da divisão Leste-Oeste tendiam a entender estes conceitos exclusivamente em termos de poderio militar, alianças estratégicas, progresso tecnológico e desempenho industrial. Por outras palavras, um Estado tinha apenas a força da sua capacidade para projectar o seu poderio e defender o seu território de ataques.
Agora que as ameaças do confronto entre as superpotências e da guerra nuclear retrocederam, surgem novas noções de segurança, baseadas no reconhecimento de que os Estados e os seus cidadãos se encontram confrontados com um conjunto bastante mais alargado de problemas - a poluição ambiental e o esgotamento dos recursos naturais do planeta, o rápido crescimento demográfico, a produção e distribuição de drogas, o crime organizado, o terrorismo internacional, as violações dos direitos humanos, a proliferação de armas ligeiras, o desemprego, a pobreza e movimentos migratórios maciços, para dar apenas alguns exemplos.
Para além de reconhecer a importância destas questões, os Estados estão cada vez mais conscientes de que estas não podem ser abordadas de forma eficaz numa base unilateral. Em consequência, os governos, incluindo aqueles que se encontravam em lados opostos durante a Guerra Fria, ensaiam agora novas formas de cooperação, em particular ao nível regional. Obviamente que subsistem diferenças de opinião, tal como pode ser observado em relação às recentes divergências sobre a futura composição da NATO, a operação militar russa na Chechénia ou a contra-insurreição turca no Norte do Iraque. Como estes exemplos sugerem, os governos continuam a colocar os seus interesses nacionais em primeiro lugar, mesmo com o risco de porem em causa os seus vizinhos e aliados. No entanto, como tem demonstrado o aumento do número de membros da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), países com tradições políticas e culturais diferentes têm vindo a aperceber-se da real vantagem de abordarem colectivamente tanto questões convencionais, como o novo leque de questões de segurança.
Ao mesmo tempo, os governos dão agora muito maior atenção
às ligações entre as diferentes questões de
segurança e reconhecem a necessidade de uma abordagem integrada.
Uma tentativa interessante de institucionalização desta última
pode ser observada na decisão da criação do cargo
de Subsecretário de Estado para as questões Globais no Departamento
de Estado norte-americano, com a responsabilidade de colocar questões
como os refugiados, o ambiente, a democratização e a assistência
humanitária no centro da política externa dos EUA. Ao nível
internacional, uma orientação semelhante caracterizou a Cimeira
Mundial sobre o Desenvolvimento Social em 1995, reforçando a interdependência
de questões como a pobreza, o desemprego e a desintegração
social, por um lado, e a insegurança, a violência, o conflito
e as violações dos direitos humanos, por outro.
O debate sobre a soberania nacional
Desde que o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, em 1991, a Resolução 688 insistindo para que o governo do Iraque permitisse o acesso imediato das organizações humanitárias internacionais a todos os que necessitassem de assistência, tornou-se um lugar comum entre os analistas, a afirmação de que o mundo está a assistir a uma erosão do conceito de soberania nacional e ao declínio do princípio de não ingerência nas questões internas dos Estados. As Resoluções das Nações Unidas e a subsequente acção dos governos relativamente a países como o Haiti, o Ruanda e a Somália parecem confirmar esta análise. Contrastando com o período da Guerra Fria, existe agora uma muito maior predisposição, entre os Estados mais poderosos, para reconhecer que acontecimentos que ocorrem no interior de um país podem constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais.
A ideia de que o princípio da soberania se encontra em declínio é bastante mais difícil de sustentar. Por exemplo, ao aprovar a Resolução 688, o Conselho de Segurança teve o cuidado de evitar uma referência explícita ao uso da força militar, reafirmando "o compromisso de todos os Estados Membros para com a soberania e a integridade territorial e política do Iraque". Nos dois anos seguintes, o consenso necessário à aprovação destas intervenções começou, no entanto, a dissipar-se. Por exemplo, na questão da ex-Jugoslávia surgiram algumas divergências significativas, quer no interior de instituições importantes como o Conselho de Segurança das Nações Unidas, a União Europeia, a NATO e a OSCE, quer entre essas instituições. Simultaneamente, muitos dos países menos desenvolvidos e países recém-industrializados, que não têm uma representação permanente nestas instituições, expressaram sérios receios em relação a esta tendência intervencionista, bem como a sua vontade de manter o princípio e a prática da soberania. A retirada da Somália da força de manutenção da paz das Nações Unidas, em Março de 1995, e a nova cautela que os governos têm manifestado relativamente à intervenção de tropas das Nações Unidas, sugere que os países menos desenvolvidos poderão estar a ver recompensados os seus esforços.
Mesmo assim, é difícil discordar com o Secretário
Geral das Nações Unidas ao declarar que terminou "o
tempo da soberania absoluta e exclusivista", uma vez que no mundo
contemporâneo, nenhum país pode esperar poder escudar-se da
influência e da atenção externas. Tal como observou
a "Global Governance Commission", "num mundo cada vez mais
interdependente, as velhas noções de territorialidade, de
independência e de não intervenção perdem algum
significado. As fronteiras nacionais são cada vez mais permeáveis
- e, nalguns aspectos, menos relevantes. A circulação mundial
de capitais, ameaças, imagens e ideias submergiu o velho sistema
de diques nacionais que preservava a autonomia e o controlo dos Estados".(1)
Reforço da importância atribuída aos direitos humanos
Outra manifestação significativa do desafio colocado à soberania nacional pode ser observada na crescente importância atribuída aos direitos humanos, bem como na maior vontade política de verificar a forma como os governos tratam (ou maltratam) os seus cidadãos, incluindo os que se encontram deslocados no seu próprio país (ver caixa 1.4).
Esta tendência está, de alguma forma, relacionada com o domínio político e económico das potências ocidentais. Com o colapso do bloco soviético e a marginalização estratégica de muitos países não alinhados, os valores dos países industrializados, fortemente centrados nas liberdades políticas e individuais, assumiram uma posição proeminente no discurso dos direitos humanos. Para além disso, ao condicionar empréstimos, subsídios e outras formas de apoio ao desenvolvimento a noções de democratização e de "boa governação" ("good governance"), os países mais ricos e as organizações financeiras internacionais podem também impor estes valores aos países mais pobres. As alterações políticas e económicas que tiveram lugar em países africanos como o Malawi, Moçambique e Zâmbia, por exemplo, não teriam quase de certeza ocorrido tão rapidamente sem este tipo de pressão.
O crescente interesse pelos direitos humanos assenta também numa base mais pragmática, uma vez que existe agora uma cada vez maior consciência de que graves violações dos direitos humanos podem ter sérias consequências para a segurança regional e internacional. Tal como demonstram acontecimentos recentes em países tão diferentes como a Arménia, o Haiti, o Iraque e o Ruanda, as consequências naturais deste tipo de abusos são o conflito armado, a violência social, a migração económica e a deslocação das populações - fenómenos que têm uma tendência natural para atravessar as fronteiras nacionais, com consequências negativas para os países vizinhos ou mais próximos.
Contudo, tal como na discussão sobre a soberania, o ritmo e a extensão das mudanças no campo dos direitos humanos não devem ser exagerados. Por um lado, o conceito ocidental de direitos humanos continua a ser fortemente contestado quer pelos países islâmicos, quer por muitos países do Leste Asiático, mais preocupados com a ordem social, com a estabilidade política e com o crescimento económico, em detrimento dos direitos e liberdades individuais. Por outro lado, recentes tentativas, no sentido do reforço da capacidade internacional não deram ainda frutos significativos, em grande parte devido à escassez de recursos financeiros.
Em face dos enormes montantes de financiamento atribuídos a operações
de assistência humanitária nos últimos cinco anos,
é difícil não concluir que, mesmo os países
mais ricos, têm uma posição um tanto ambígua
relativamente a estes desenvolvimentos.
A natureza evolutiva das Nações Unidas
As Nações Unidas foram seriamente afectadas pela Guerra Fria. Tendo sido claramente estabelecida com base em princípios universais, a organização tornou-se rapidamente o palco de conflitos entre as superpotências e os seus aliados. Ao nível político, o Conselho de Segurança foi frequentemente bloqueado. A um nível mais operacional, as várias actividades das Nações Unidas e das suas agências especializadas associaram-se frequentemente a um, ou outro, dos dois principais blocos. Por exemplo, desde a sua fundação em 1951 e durante cerca de 40 anos, o ACNUR foi financiado, dotado de pessoal e orientado sobretudo pelos membros da aliança ocidental e pelos países não alinhados, situação que inevitavelmente teve repercussões sobre a sua abordagem dos problemas dos refugiados.
Durante os últimos cinco anos, o novo (mesmo que frágil)
consenso entre os membros permanentes do Conselho de Segurança permitiu
que as Nações Unidas apoiassem e se envolvessem em actividades
que teriam sido inconcebíveis durante a Guerra Fria, em particular
em áreas como a manutenção da paz, a assistência
humanitária e a imposição de sanções.
Ao mesmo tempo, o ACNUR começa agora a assumir um carácter
mais genuinamente multilateral. Muitos dos países do antigo bloco
do leste assinaram a Convenção das Nações Unidas
relativa ao Estatuto do Refugiado. O ACNUR está agora representado
de Baku a Bucareste e de Taskent a Tirana e os seus agentes no terreno
trabalham, cada vez mais, em estreita cooperação com unidades
de manutenção da paz nos quatro cantos do mundo.