Num anúncio afixado no aeroporto de Heathrow, em Londres, afirma-se orgulhosamente: "Nenhum lugar do mundo fica a mais de 18 horas deste aeroporto". Trata-se de uma declaração surpreendente que, tal como muita outra publicidade deve ser encarada com alguma reserva, mas que com alguma liberdade poética, nos dá uma ideia da facilidade com que actualmente podemos atravessar o planeta. Em 1994, só pelo aeroporto de Heathrow, passaram 51 milhões de pessoas, um terço das quais se encontrava em trânsito, aguardando vôos de ligação para outros destinos.
A expansão global das viagens e da indústria das comunicações contribuiu muito para o rendimento mundial, abrindo oportunidades que para as gerações anteriores seriam impensáveis. Contudo, ao mesmo tempo, estes desenvolvimentos têm desempenhado um papel importante na evolução de uma persistente questão internacional: o movimento não controlado e muitas vezes não desejado de pessoas, provenientes de países relativamente pobres e inseguros, para países mais prósperos e estáveis. Este problema tem sido ampliado pela natureza, cada vez mais complexa, destes movimentos. A tradicional divisão entre migração voluntária e involuntária, bem como entre refugiados e migrantes económicos, tem vindo a desaparecer. Actualmente, as pessoas abandonam o seu país, devido à combinação de vários factores, nomeadamente medos, esperanças e ambições que podem ser dificeis, se não mesmo impossíveis, de deslindar.
A natureza evolutiva da migração internacional tem
confrontado a comunidade internacional com um triplo desafio - a gestão
das deslocações de população, de forma a assegurar
o respeito pelos direitos humanos e princípios humanitários,
em particular pelo direito de asilo, a protecção dos legítimos
interesses dos países e comunidades afectados por estes fluxos populacionais,
e a remoção ou redução de pressões,
que levam tantas pessoas a procurar um futuro mais seguro e próspero,
para além das fronteiras do seu próprio país. Como
este capítulo procura explicar, encontrar soluções
para o problema dos refugiados depende, significativamente, da concretização
destes objectivos.
"México reenvia "boat people" chineses". "Noruega prepara-se para deportar Tamils". "EUA querem reduzir a imigração a um terço". "Alemanha fecha a porta a requerentes de asilo". "Gabão expulsa trabalhadores clandestinos". "Hong Kong deverá forçar mais vietnamitas a regressarem ao seu país". "Austrália endurece a sua lei de asilo". Tal como sugerem estes recentes títulos de jornais, a questão da migração internacional atingiu o topo da agenda política em todas as regiões do mundo. No Norte e no Sul, a Leste e a Oeste, países de todas as ideologias e estádios de desenvolvimento manifestam a sua preocupação em relação ao fluxo de pessoas através das suas fronteiras.
Durante os últimos anos, a questão das migrações têm também figurado, de uma forma bastante mais destacada, nas dicussões intergovernamentais, ao nível regional e internacional. Por exemplo, em Dezembro de 1992, uma cimeira da União Europeia fez notar que "a pressão sobre os Estados Membros resultante dos movimentos migratórios" era "uma questão de grande preocupação e que continuaria provavelmente a sê-lo durante a próxima década". No mesmo ano, um documento de uma discussão intergovernamental observava que " a migração é agora vista como uma questão prioritária, de peso equivalente a outros desafios globais, como o ambiente, o crescimento populacional e os desequílibrios económicos entre as regiões".
De acordo com um especialista, estes desenvolvimentos são sintomáticos
da actual "crise global da migração". Este sentimento
de crise, insiste o mesmo especialista, é partilhado por políticos
e pela opinião pública em geral. "Os cidadãos
receiam estar agora a ser invadidos, não por exércitos e
tanques, mas por migrantes que falam outra língua, veneram outros
deuses e pertencem a outras culturas e receiam que estes lhes tirem o emprego,
ocupem as suas terras, sobrecarreguem os seus sistemas de segurança
social e ameacem o seu modo de vida. (1)
A dimensão e o âmbito da migração internacional
As últimas décadas do século XX têm sido marcadas por, ada vez maiores movimentos de pessoas, que atravessam o planeta. Tal como foi explicado nos capítulos anteriores, nos últimos 30 anos, a população mundial de refugiados aumentou substancialmente, passando de menos de dois milhões em 1965, para cerca de 15 milhões actualmente, um número que não inclui os vários milhares de palestinos, bósnios e outros grupos deslocados que não são formalmente reconhecidos como refugiados.
Mas as pessoas que saem do seu país para fugir ao terror político, aos conflitos armados ou a violações dos direitos humanos constituem apenas uma parte da população global de migrantes. Embora as estatísticas disponíveis sejam de alguma forma inconsistentes, o número de pessoas que actualmente vivem fora do seu país de origem ou do qual têm a nacionalidade, aumentou de cerca de 75 milhões, em 1965, para, pelo menos, 120 milhões actualmente.
A escala crescente da migração internacional tem-se manifestado, tanto em termos geográficos, como numéricos. De facto, desde o final da Guerra Fria, quase todos os países do mundo têm sido afectados por este fenómeno. Há menos de uma década, os especialistas em questões da migração internacional podiam brincar, dizendo que se todos os países fossem como a Albânia (que recusava a saída a qualquer dos seus cidadãos) ou como o Japão (que mantinha um apertado controlo da imigração) o seu trabalho se tornaria redundante. Mas, nos últimos anos, mesmo estas sociedades sofreram importantes movimentos migratórios.
De acordo com a OIT, o influxo em números líquidos de trabalhadores estrangeiros para o Japão, por exemplo, disparou de menos de 60.000, em 1987, para mais de 160.000, em 1990. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que permanecem no país após os seus vistos terem caducado aumentou de menos de 50.000, em 1987, para mais de 250.000, em 1992. E o movimento de pessoas da Albânia para a Itália (que envolveu não apenas cidadãos albaneses, mas também imigrantes ilegais provenientes de lugares tão distantes como a China) tem sido de tal ordem que as autoridades de ambos os países se viram obrigadas a lançar operações militares para impedir o trânsito através do mar Adriático.
Assim, o movimento de pessoas tornou-se um fenómeno verdadeiramente global. A OIT avança que, actualmente, mais de 100 países podem ser caracterizados como países que registam uma grande entrada ou saída de migrantes. Cerca de um quarto destes países registam, simultaneamente, quer a saída quer a entrada de um número substancial de migrantes. Este fenómeno deitou por terra a tradicional distinção entre "países de emigração", "países de imigração" e "países de trânsito". Assim, se por um lado, o nível e o âmbito da migração internacional continuam a aumentar, o seu padrão também se tem tornado mais complexo.
Esta tendência deverá, ao que parece, continuar a verificar-se. Em relação ao destino dos movimentos migratórios, aos tradicionais - América do Norte, Europa Ocidental e Austrália - juntam-se agora os países produtores de petróleo do Médio Oriente e, mais recentemente, as economias em rápido desenvolvimento do Leste Asiático. Entre as regiões menos desenvolvidas, os fluxos migratórios também têm sofrido alterações em função das modificações de prosperidade relativa e de estabilidade dos diferentes países. Por exemplo, a África do Sul atrai actualmente um número cada vez maior de migrantes e requerentes de asilo de outras regiões do continente africano, um fenómeno que já causou algumas dificuldades ao novo governo daquele país (ver caixa 5.1).
Também nos países de origem se têm verificado alterações
significativas. O tão proclamado êxodo da ex-URSS tem sido
bastante mais reduzido do que muitos analistas previam no início
da década. No entanto, sob o efeito combinado da instabilidade política,
dos conflitos armados e da perturbação económica,
que se fazem sentir em muitos dos novos Estados independentes, apenas poderá
aumentar a possibilidade da ocorrência de significativas deslocações
de população. As importantes alterações sociais
e económicas que estão a ter lugar na China já se
manifestaram através de um fluxo maciço de imigrantes ilegais
- pelo menos 600.000 pessoas, de acordo com muitas estimativas. Mesmo se
países como a Argélia, Egipto, Haiti e Sri Lanka conseguirem
evitar a escalada da violência política que têm sofrido
nos últimos anos, as dificuldades económicas e demográficas
que afligem estes países, conjugadas com a proximidade de regiões
bastante mais prósperas, poderá despoletar a saída
de muitos mais dos seus cidadãos, que procuram um futuro no estrangeiro.
Porque migram as pessoas?
Num mundo em que as diferenças entre os rendimentos se têm vindo a alargar, onde a população aumenta mais rapidamente do que as oportunidades geradoras de rendimentos, onde se trava um maior número de combates e guerras civis do que em qualquer outro período da história contemporânea e onde as violações dos direitos humanos ainda são sistemáticas, não surpreende que um número, cada vez maior, de pessoas se desloque de uma região do mundo para outra.Os fluxos migratórios não podem, contudo, ser planeados ou previstos pela mera enumeração das pressões que "empurram" as pessoas para fora de um país e as "puxam" para outro. As disparidades entre rendimentos, oportunidades e níveis de segurança encontram-se, obviamente, subjacentes a qualquer decisão de migrar, mas uma explicação adequada para a escala e âmbito crescentes da migração internacional deve, também, ter em conta diversas outras variáveis.
A recente expansão da rede de comunicações globais - ligações telefónicas, antenas parabólicas e lojas de aluguer de vídeos - teve já um efeito profundo sobre a consciência das sociedades menos prósperas. Os horizontes foram alargados, as expectativas aumentadas e as diferenças culturais diminuídas. As imagens veiculadas por estes meios de comunicação poderão ser, em grande parte, falsas. No entanto, transmitem uma mensagem poderosa sobre as vantagens desfrutadas pelas pessoas que vivem nos países desenvolvidos.
A melhoría dos transportes também tem tido um impacto determinante na escala, no âmbito e na direcção da migração internacional. As pessoas não decidem residir noutro país apenas porque existem meios que o permitem, mas a facilidade com que se pode viajar de um ponto do planeta para outro, faz surgir oportunidades e aspirações, sobretudo em relação a muitas pessoas que, até aqui, não podiam sair do seu país por não terem passaporte ou autorização de saída.
Quem aspira a viver e trabalhar noutro país, pode encontrar apoio.
Muitos migrantes internacionais são auxiliados por uma rede social
de amigos, familiares e compatriotas, que já se encontram instalados
noutros países e lhes podem oferecer habitação, trabalho,
apoio financeiro e outras formas de assistência. Outros utilizam
os serviços de agentes e traficantes profissionais, cuja função
é a de fazer chegar os potenciais migrantes ao destino pretendido,
quer a sua presença seja, ou não, desejada pelas autoridades
desse país (ver 5.2). Como se explica a seguir, muitas vezes, a
sua presença não é, de facto, desejada.
A janela da migração e a porta do asilo
Os países mais prósperos mantêm as suas portas abertas a migrantes provenientes de outras regiões do mundo - desde que possuam qualificações de que estão carenciados, recursos financeiros substanciais para investir ou laços familiares próximos com o país em questão. Contudo, para o indivíduo que não preencha estas condições, as oportunidades de admissão no território são extremamente limitadas. Como refere, de forma frontal, um analista, nos países industrializados "a necessidade da imigração maciça terminou e não voltará a surgir". (2)
Não é difícil perceber porquê. Durante os 30 anos de crescimento económico que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, os países industrializados da América do Norte, Europa Ocidental e Oceânia necessitaram de mão-de-obra adicional e recrutaram activamente imigrantes e trabalhadores migrantes, provenientes de regiões como o Norte de África, Sul da Europa, subcontinente indiano e Caraíbas. No início deste período, também admitiram um elevado número de estrangeiros, através de programas de reinstalação de refugiados, muitos dos quais provinham da Europa do Leste, que tinha caído sob o controlo comunista.
Contudo, esta fase terminou abruptamente, em meados dos anos 70, quando a conjugação de um conjunto de diferentes tendências, em particular na Europa Ocidental, eliminou a anterior necessidade de imigração. Estas tendências incluiram nomeadamente:
o fim do crescimento pós-guerra e a consequente redução das taxas de crescimento económico;
o declínio de indústrias tradicionais que utilizavam a mão-de-obra de forma intensiva, bem como a introdução de novas tecnologias, caracterizadas pela utilização intensiva de capital, diminuindo a necessidade de trabalhadores manuais;
o aumento dos níveis de desemprego nacionais e o facto dos empregadores conseguirem responder à sua necessidade de mão-de-obra não qualificada, através da contratação de mulheres e de trabalhadores não declarados ou clandestinos;
a incapacidade dos governos repatriarem trabalhadores migrantes, contratados
a curto prazo, conjugada com a chegada de novos imigrantes, decorrente
do reagrupamento familiar.
Em resultado destas e outras considerações, durante os
anos 70 e 80, a maioria dos países industrializados suspenderam
o recrutamento de migrantes não qualificados, introduziram leis
de imigração cada vez mais restritivas e, nalguns casos,
concederam incentivos a trabalhadores estrangeiros que optassem por regressar
a casa. Contudo, precisamente na mesma altura, aumentaram as pressões
da migração sobre os países mais pobres - estagnação
económica, crescimento demográfico, desemprego crescente,
violência social e instabilidade política, bem como a expansão
dos meios de comunicação e dos transportes. Como sugere o
Instituto de Investigação para o Desenvolvimento Social das
Nações Unidas, tem vindo a desenvolver-se "uma mistura
explosiva" entre a crescente pressão migratória e o
endurecimento das barreiras à imigração. Cada vez
é maior o número de potenciais migrantes e cada vez há
menos lugares para onde possam ir". (3)
Movimentos ilegais e irregulares
Se a história da migração internacional nos ensina alguma coisa, é concerteza que existem poucas limitações à criatividade e resistência de indivíduos determinados a sairem do seu país. Por mais sérios que sejam os obstáculos geográficos, políticos e financeiros com que se confrontam, uma percentagem dos homens e mulheres que desejam mudar-se para uma sociedade mais próspera e mais estável, invariavelmente consegue fazê-lo. Por isso, não surpreende que um número substancial de pessoas tenha conseguido abrir caminho ou contornado os controlos de imigração que os países industrializados têm vindo a estabelecer ao longo dos últimos 20 anos.
Conseguiram-no de diferentes formas. Alguns migrantes, que anteriormente teriam conseguido chegar à América do Norte, Europa Ocidental ou Austrália, deslocaram-se, em vez disso, para regiões onde existe uma maior procura dos seus serviços: o Médio e o Extremo Oriente, bem como para pólos de crescimento económico regionais, como a África do Sul, Costa do Marfim, México e Venezuela. Outros, sobretudo aqueles que possuiam as necessárias qualificações, recursos ou ligações familiares, conseguiram entrar nos países industrializados através de programas de imigração regulares.
Para potenciais migrantes que não preencham estas condições restam duas opções - entrar e permanecer ilegalmente no país ou contornar os normais controlos de imigração, pedindo o estatuto de refugiado. Ao longo das duas últimas décadas, um número cada vez maior de pessoas, provenientes de países com um baixo ou médio rendimento recorreram a estas duas opções (que obviamente não se excluem mutuamente). Muitos pedidos de asilo são submetidos depois das pessoas terem entrado no país, quer o tenham feito, ou não, legalmente.
Estatísticas rigorosas sobre a imigração ilegal são, por definição, difíceis de obter, mas a OIT sugere que o número de pessoas que cabem nesta categoria será de cerca de 30 milhões, 4.5 milhões das quais só nos EUA. Também podemos encontrar populações numerosas de imigrantes ilegais na Alemanha, Itália e Espanha (500.000 cada), no Japão (cerca de 300.000), em França (200.000), na República da Coreia e em Taiwan (100.000 cada), na Austrália e Nova Zelândia (cerca de 100.000 no total).
O número de pessoas que procuram asilo nos países industrializados pode ser calculado de forma bastante mais rigorosa. De acordo com estatísticas recolhidas pelo ACNUR, este número aumentou de pouco mais de 100.000 em 1983, para cerca de 240.000 em 1986, 470.000 em 1989, e 849.000 em 1992. Só nos últimos dois ou três anos se registou uma descida deste número, atingindo cerca de 700.000 em 1993, e 500.000 em 1994. Os países industrializados receberam, no total, cerca de cinco milhões de pedidos de asilo, desde o início dos anos 80.
Embora o número de pedidos de asilo tenha, até muito recentemente,
observado uma progressiva tendência ascendente, a percentagem de
requerentes a quem é de facto concedido o estatuto tem registado
uma tendência contrária. Por exemplo, na Europa Ocidental
a taxa de reconhecimento do estatuto de refugiado era de 42% em 1984. Contudo,
em 1993, tinha caído para menos de 10%.
A distinção entre refugiados e migrantes económicos
Dos números apresentados acima é fácil concluir que muitos requerentes de asilo nos países industrializados são de facto migrantes económicos, que utilizam a via do asilo para conseguir entrar em países de onde, de outra forma, seriam excluídos. Também seria absurdo negar que este argumento tem um fundo de verdade. Nas palavras da Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados, "para os potenciais migrantes que não preenchem as condições necessárias para a obtenção de um visto, os procedimentos de asilo parecem oferecer uma oportunidade de garantir a sua admissão e de melhorar a sua vida no novo país. Na ausência da janela da migração, as pessoas que procuram emprego e um futuro melhor tentam passar pela porta do asilo".
Se cada pedido de asilo pudesse ser claramente caracterizado como "verdadeiro" ou "falso", não seria necessária uma análise muito mais detalhada. Mas esta questão é tão complexa que não tem cabimento uma distinção tão simplista.
Nos trinta anos que se seguiram à aprovação da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto de Refugiado, a tarefa de distinguir entre "refugiados" e "migrantes económicos" não apresentava problemas de maior. Ao longo da maior parte desse período, o número de indivíduos que procuraram asilo nos países industrializados manteve-se relativamente baixo. Por outro lado, uma grande percentagem destas pessoas provinha de países comunistas, onde a ameaça de perseguição era considerada auto-evidente pelos governos dos países de acolhimento.
Apesar do número de refugiados em África, na Ásia e na América Latina ter começado a aumentar nos anos 60 e 70, a grande maioria dos refugiados permanecia na sua própria região e devido às imensas oportunidades de imigração oferecidas, naquela altura, pelos países ocidentais, as pessoas que desejavam sair do seu próprio país ou região, por serem vítimas de perseguição ou da violência política, nem sempre eram obrigadas a requerer o estatuto de refugiado para conseguirem obter o direito de residir noutro país.
Actualmente, os migrantes económicos tendem a utilizar a porta do asilo em vez da janela da imigração. No entanto, ao mesmo tempo, pessoas que poderiam preencher os critérios para obtenção do estatuto de refugiado podiam imigrar com muita facilidade. Em consequência, algumas das dificuldades com que actualmente nos confrontamos na determinação do estatuto de refugiado não eram então tão evidentes.
Quais são exactamente estas dificuldades? Tradicionalmente, o ACNUR e outras organizações vocacionadas para o problema dos refugiados têm tido pouca intervenção nesta questão, receando que qualquer diluição da distinção básica entre refugiados e migrantes económicos pudesse ter um impacto negativo em relação às pessoas que procuram proteger. Contudo, ultimamente, a Alta Comissária tem reconhecido que é necessária uma abordagem mais aberta desta questão. "A realidade", argumenta a Alta Comissária, "é que os actuais movimentos de refugiados ocorrem no contexto de fluxos migratórios mais amplos e mais complexos, diluindo-se com facilidade a distinção entre refugiados e migrantes".
A primeira, e geralmente a mais reconhecida, forma de diluição da distinção entre refugiado e migrante decorre do modo como os governos têm interpretado a Convenção das Nações Unidas de 1951 sobre o Estatuto de Refugiado, que descreve o refugiado como uma pessoa "receando com razão ser perseguido" no seu país de origem. Muitos países africanos e latino-americanos alargaram esta definição, de forma a incluir pessoas que fugiram do seu país devido à violência generalizada, a conflitos internos e a graves perturbações da ordem pública que aí se vivem. Mas os países industrializados têm geralmente preferido insistir no significado mais restritivo do conceito e, em muitas situações, negaram o estatuto de refugiado a pessoas que cabiam na definição mais alargada.
Contudo, na prática, este países também reconhecem que, mesmo requerentes de asilo que não preenchem os critérios para obtenção do estatuto de refugiado, poderão não conseguir regressar a um país afectado por um conflito, sem que coloquem a sua vida ou a sua liberdade em perigo. Consequentemente, os governos têm sido forçados a conceber um conjunto de alternativas jurídicas (normalmente conhecidas como "estatuto humanitário"), que visam oferecer aos requerentes de asilo, cujos pedidos tenham sido rejeitados, pelo menos o direito de residência temporária.
O número substancial de requerentes que tem beneficado destas alternativas projecta uma luz diferente e mais positiva sobre as taxas de rejeição de pedidos de asilo, atrás referidas. Assim, por exemplo, em 1993, dos 685.000 pedidos analisados na Europa ocidental, apenas 45.000 obtiveram o estatuto de refugiado. Mas um número adicional de 178.000 pessoas pôde permanecer nesses países, por razões humanitárias ou com outros fundamentos. Assim, embora a taxa de reconhecimento do estatuto de refugiado tenha ficado aquém dos 10%, em relação a mais de 30% dos casos, foi reconhecida a existência de motivos legítimos que justificavam a permanência no país onde tinham procurado asilo. Como estes números sugerem, a percentagem de requerentes que são na verdade migrantes económicos, procurando entrar através da porta do asilo, é consideravelmente inferior àquilo que poderia parecer à primeira vista.
A distinção entre refugiado e migrante é complexa devido ainda a um conjunto de outras considerações. O conflito armado e o caos político andam, quase invariavelmente, a par com o insucesso económico. Países afectados pela violência generalizada são normalmente caracterizados por baixas (ou negativas) taxas de crescimento, padrões de bem-estar social em declínio, inflacção elevada e desemprego crescente. Nestas circunstâncias, as pessoas poderão sentir-se forçadas a abandonar o seu país devido a um conjunto de razões que envolvem, nomeadamente, o desejo de garantir a sua segurança física e económica. Por isso, poderá ser difícil traçar uma distinção clara entre o que, tradicionalmente, tem sido designado como as "causas de raíz" dos movimentos de refugiados e as "pressões migratórias", já identificadas neste capítulo. Hoje, mais do que nunca, os refugiados são parte de um fenómeno migratório complexo, no qual se combinam factores políticos, étnicos, económicos, ambientais e de direitos humanos, que provocam deslocações de população.
Embora determinados requerentes de asilo pareçam ser motivados pelas duras condições materiais de vida e pela vontade de conseguirem alcançar um melhor nível de vida, a pobreza pode, por si mesma, encontrar-se ligada a uma situação de discriminação ou perseguição por motivos políticos, sociais ou religiosos. Infelizmente, ainda existem alguns países onde membros de grupos minoritários são excluídos da vida normal da sua sociedade, com um maior ou menor envolvimento dos governos. Consequentemente, podem ter dificuldade em encontrar emprego, montar um negócio, adquirir bens, comprar terras ou mesmo de se deslocarem livremente no seu próprio país. As pessoas que migram para fugir a estas condições miseráveis de vida poderão ser legitimamente consideradas refugiadas.
Os recentes desenvolvimentos políticos e económicos em países como a Albânia, Cuba, Haiti e Vietname também suscitaram um fenómeno conhecido como "migração mista" - deslocações da população que incluem requerentes de asilo que se viram forçados a abandonar o seu país por alguma das razões que fundamentam o direito de asilo, bem como pessoas que optaram por se deslocar com o objectivo de melhorar o seu nível de vida, ou de se reunirem à sua família noutro país.
Poderão surgir dificuldades particulares nos casos de migrações mistas em que o ratio de refugiados e migrantes económicos sofra uma alteração objectiva significativa, levando a que um movimento que, inicialmente, era visto pelos países de acolhimento como um fluxo de refugiados se redefina, passando a ser encarado como um movimento de migrantes económicos.
Por exemplo, no que diz respeito ao Vietname, é óbvio que nos últimos anos, muitos dos "boat people", cujos pedidos de estatuto de refugiado foram rejeitados e se espera que regressem a casa, teriam anteriormente sido considerados como refugiados e ter-lhes-ia sido oferecida a possibilidade de se reinstalarem em países industrializados. Por isso, a distinção entre refugiado e migrante encontra-se sujeita a interpretações variáveis por parte dos países de asilo, dependendo do número de requerentes envolvidos e do contexto político em que a sua partida ocorre.