"A anarquia aproxima-se: as nações fragmentam-se sob a torrente de refugiados fugindo a catástrofes ambientais e sociais. Fazem-se guerras pelos escassos recursos existentes, especialmente a água. A guerra transforma-se, ela própria, num crime continuado, à medida que bandos armados de saqueadores sem pátria entram em confronto com as forças de segurança privadas das elites."
Embora possa parecer a trama de um filme particularmente sinistro, o parágrafo anterior foi, de facto, retirado de uma publicação académica - "The Atlantic Monthly", onde se apresenta a previsão de Robert D. Kaplan para as primeiras décadas do século XXI.
Kaplan não está de forma alguma sozinho na sua negra visão do futuro. Há precisamente cinco anos, a queda do bloco de leste e o final da Guerra Fria deram lugar a uma enorme sensação de optimismo em relação à nova ordem mundial, a qual não foi menor no interior da estrutura política norte-americana.
Mas este sentimento foi entretanto alterado e sintetizado pelo título de um livro recentemente publicado pelo ex-conselheiro presidencial para os assuntos de segurança Zbignew Brzezinski: "Out of Control: Global Turmoil on the Eve of the Twenty-first Century".
Os estudiosos prevêem igualmente um futuro inseguro. No seu
"best-seller", "Preparing for the Twenty-first Century",
o historiador Paul Kennedy sugere que poderemos estar a entrar num período
em que a humanidade não consegue enfrentar os desafios colocados
pela combinação de alterações tecnológicas,
degradação ambiental e crescimento demográfico. "Com
que tipo de futuro nos confrontamos", questiona-se ele, "se os
tumultos sociais aumentam ao mesmo ritmo que a população
mundial?" (1)
Motivos de preocupação
Um olhar rápido sobre a situação global dos refugiados poderá parecer confirmar estes prognósticos cinzentos. Nos últimos cinco anos observou-se um rápido aumento do número de pessoas afectadas pelo conflito armado e pela violência social. Embora não seja fácil elaborar estatísticas precisas, o número de pessoas deslocadas no interior e fora do seu próprio país encontra-se actualmente próximo dos 50 milhões - cerca de uma em cada 110 pessoas em todo o planeta. E este número não inclui as muitas pessoas que são desenraizadas por catástrofes ecológicas ou industriais ou por programas de relocalização patrocinados pelos governos. De acordo com o Banco Mundial, durante a última década cerca de 90 milhões de pessoas foram deslocadas para que se pudesse abrir caminho a barragens, estradas e outros projectos de desenvolvimento.
Tal como foi sugerido nos capítulos anteriores, o número de refugiados não é o único motivo de preocupação. Em muitos conflitos armados, as formas mais cruéis de deslocação em massa de populações que se podem imaginar tornaram-se um objectivo deliberado dos beligerantes. A assistência humanitária é utilizada como uma arma de guerra, enquanto, em todo o mundo, Estados e sociedades fecham as suas portas às vítimas da violência. Apesar da maioria dos refugiados serem vítimas de circunstâncias que se encontram para além do seu controlo, alguns membros de populações deslocadas estão armados e trazem a violência e a instabilidade, quer para o interior das sociedades onde se integram, quer para os seus países de origem.
Apesar dos esforços do ACNUR e dos seus parceiros para resolver a situação das populações deslocadas, não existe nenhuma solução à vista para alguns dos maiores grupos de refugiados do mundo - os ruandeses na Tanzânia e no Zaire, os liberianos na Costa do Marfim e na Guiné e, é claro, as pessoas deslocadas da ex-Jugoslávia, para dar apenas alguns exemplos.
Ao longo dos anos, as conferências internacionais têm subscrito
repetidamente a ideia de que os programas de assistência a refugiados
deveriam ser "desde o início, orientados para a solução
do problema". Contudo, a dura realidade, é a de que as soluções
dependem, em última instância, de factores políticos,
militares e económicos que se encontram para além do controlo
de qualquer organização humanitária. Nalgumas situações,
a única opção poderá ser a de fornecer alimentos,
abrigo e outros serviços básicos aos refugiados, até
que chegue o momento em que a sua situação possa ser adequadamente
resolvida.
As qualidades e talentos dos refugiados
Apesar da procura de soluções se confrontar com obstáculos significativos, é demasiado fácil cair na armadilha do pessimismo humanitário - um síndroma que, mesmo que de forma não intencional, prejudica a própria causa que se procura defender. Quando cada nova deslocação é referida como uma "crise sem precedentes", quando os refugiados são retratados como pessoas que não são portadoras de nada além de carências e, quando as organizações de ajuda humanitária e os meios de comunicação social insistem em dar publicidade aos problemas dos refugiados em vez de divulgarem a sua resolução, poderá surpreender que o mundo acuse algum cansaço em relação a esta questão? Por isso, em conclusão, é necessário relembrar alguns dos aspectos mais positivos que surgem da análise da situação dos refugiados no mundo.
Nos últimos anos observou-se um crescimento substancial do número de pessoas e organizações com um interesse profissional em relação aos refugiados, quer em funções práticas, quer em funções de análise. Tal como em qualquer outra área de actividade especializada, o sector dos refugiados desenvolveu a sua própria gíria, um vocabulário repleto de conceitos como "protecção temporária", "país terceiro seguro" e "soluções duradouras", que significam relativamente pouco para pessoas que não estejam envolvidas nesta questão.
Embora estes sejam desenvolvimentos normais e talvez até inevitáveis, têm tido o infeliz efeito de diminuir a atenção prestada às aspirações e actividades dos próprios refugiados. Tal como observou um antropólogo, com demasiada frequência, os refugiados são vistos como o objecto da acção, como "beneficiários" ou "processos individuais", em vez de serem encarados como actores de direito próprio. "São um tipo de pessoas que há que contar, registar, estudar, analisar e, desejavelmente, em devido tempo "repatriar", momento em que voltam a ser novamente "pessoas normais".(2)
Os campos de refugiados não são, é claro, lugares "normais", em particular em situações em que a população tenha pouco ou nenhum acesso à terra ou a trabalho remunerado dependendo, por isso, da assistência externa. Mas talvez a característica mais marcante de qualquer população de refugiados, em particular numa fase pós-emergência, é a forma como os seus membros têm preocupações humanas muito comuns - escolher um parceiro, educar os filhos, manter relações sociais, tentar melhorar o seu nível de vida e, em geral, tirar o melhor partido possível daquilo que pode ser uma situação muito dura, tanto em termos físicos, como psicológicos.
Tal como qualquer outro grupo de pessoas, os refugiados não são igualmente diligentes, mas para realizarem as suas necessidades e aspirações básicas as populações exiladas e deslocadas são obrigadas a desenvolver um conjunto de estratégias práticas para enfrentarem os seus problemas. Algumas destas estratégias relacionam-se, naturalmente, com a prestação de assistência, um dos recursos mais visíveis e essenciais numa situação de refugiados. Tal como comentou um analista, "quando os refugiados compram e vendem cartões de racionamento, inscrevem crianças várias vezes, dividem as suas famílias entre um campo de assistência humanitária e actividades económicas externas e criam mercados à volta dos campos para transaccionarem cereais e outros produtos da assistência, demonstram qualidades e talentos." (3)
Quando existem outras formas de ganhar a vida numa região onde se tenham instalado refugiados, estas raramente são ignoradas. Tal como concluiu um estudo sobre os refugiados etíopes na Somália, "não só os refugiados agarram todas as oportunidades disponíveis para conseguirem obter um rendimento, mas também participam em relações económicas com ricos negociantes e agricultores locais, concebendo acordos contratuais que lhes permitam conseguir o acesso à terra ou a trabalho remunerado. Estas relações não são, com frequência, equitativas mas face às restrições prevalecentes proporcionam aos refugiados um meio de se lançarem em actividades produtivas, por ínfimos que sejam os ganhos". (4)
São precisamente as mesmas qualidades que podem ser observadas em qualquer programa de repatriamento do ACNUR, quando, após anos de vida no exílio, os refugiados desembarcam lentamente do autocarro, camião ou barco que os transportou de regresso ao seu país, levantam os seus magros pertences e um modesto pacote de assistência, regressam a pé à sua aldeia e começam a recolher os pedaços de vida que deixaram para trás.
Por outro lado, as próprias estatísticas do ACNUR demonstram que a maioria dos retornados que regressam fazem-no de livre vontade, sem que lhes seja fornecido transporte pela organização.
A procura de soluções não depende, por isso, apenas
das organizações internacionais e das organizações
não governamentais. Depende, em grande instância, dos conhecimentos
e capacidades dos próprios refugiados e da sua determinação
em retomarem uma vida mais produtiva. A protecção e a assistência
fornecidas pelos Estados e pelas organizações humanitárias
é, obviamente, uma componente essencial da procura de soluções.
Mas este tipo de actividades mostrar-se-ão provavelmente mais eficazes
se apoiarem as escolhas e estratégias dos refugiados, permitindo
que os homens, mulheres e jovens em questão demonstrem as suas qualidades.
As crises actuais numa perspectiva mais alargada
O problema dos refugiados tende a ser retratado em termos catastróficos e não é difícil perceber porquê. Em termos objectivos, a própria dimensão e complexidade do problema da deslocação de populações nos últimos anos justificaria esta atitude. Para além disso, um conjunto de outros factores mais subjectivos entra também em jogo. Muitas agências de ajuda dependem da adesão do público para mobilizarem apoios para a sua causa e tendem, por isso, a fixar-se nas dimensões mais trágicas do seu trabalho. Os governos dos países de acolhimento, nas regiões com baixos rendimentos, anseiam naturalmente por salientar o peso que suportam ao oferecer refúgio a um grande número de pessoas deslocadas, ao passo que os países industrializados têm por vezes exagerado a dimensão do problema de refugiados para poderem justificar o encerramento das suas fronteiras a requerentes de asilo e outros migrantes.
Sem subestimar de qualquer forma o sofrimento experimentado pelos exilados em todo mundo e os problemas que a sua presença pode criar aos países e comunidades de acolhimento, existe também a necessidade de se analisarem os actuais problemas de refugiados segundo uma perspectiva geográfica e histórica mais alargada. É frequentemente esquecido, por exemplo, que apesar da proliferação de conflitos internos e deslocações da população que caracterizou os últimos cinco anos, durante o mesmo período, cerca de nove milhões de refugiados puderam regressar às suas casas, frequentemente para países onde tinham sido resolvidos ou diminuídos conflitos duradouros e onde, pela primeira vez, foram estabelecidos sistemas de governo pluralistas.
De modo semelhante, apesar da erosão do instituto do asilo em certas regiões do mundo, não se deve esquecer que os Estados continuam a oferecer refúgio a um número substancial de requerentes de asilo, dando-lhes a oportunidade de iniciarem uma vida segura e produtiva. Em 1994, por exemplo, 250.000 pessoas obtiveram asilo ou protecção nos países industrializados - quase o dobro das 136.000 cuja permanência foi autorizada em 1985, mas é claro, uma percentagem muito menor quando comparada com o número total de pedidos.
Regiões que em tempos deram origem a números maciços de pessoas desenraizadas, tais como a América Central, o Sudeste Asiático e a África Subsaariana, figuram actualmente de forma bastante menos destacada no mapa internacional dos refugiados. Nestas e noutras situações, as organizações humanitárias desempenharam um papel essencial, agarrando e criando novas oportunidades para a resolução dos problemas dos refugiados, bem como consolidando acordos políticos através de esforços de repatriamento, reintegração e reconciliação.
Talvez seja inevitável que cada geração considere que os seus problemas são muito maiores e mais complexos do qualquer outra coisa vivida no passado. Daí a tendência para qualificar cada nova situação de emergência de refugiados com tendo uma escala, velocidade ou sofrimento "sem precedentes". Mas se a procura de soluções na Libéria, Ruanda ou ex-Jugoslávia parece por vezes uma missão impossível, então valerá a pena recordar que foram manifestados sentimentos semelhantes em relação à situação dos refugiados na Europa durante os anos 40 e 50, ao êxodo de Indo-Chineses nos anos 70 e de refugiados moçambicanos nos anos 80.
É claro que os conflitos internos que irromperam nos últimos anos representam um desafio particularmente difícil para a comunidade internacional em geral e para as Nações Unidas em particular. Com o colapso da velha ordem mundial, novas linhas divisórias surgiram no interior e entre os Estados. No espaço de poucos anos, o mundo passou da previsibilidade da Guerra Fria para um período de turbulência e de transição, cujo resultado final ainda é desconhecido. Recentes situações de emergência de refugiados em regiões como os Balcãs, o Cáucaso e a África Central são, em muitos sentidos, bastante diferentes das situações de emergência observadas em anos anteriores, em particular no que diz respeito à sua imprevisibilidade e volatilidade, bem como à sua complexidade logística e ao nível de perigo envolvido para o pessoal humanitário. Neste período de incerteza e de rápidas alterações dos assuntos internacionais, as expectativas das Nações Unidas e das suas agências especializadas também aumentaram substancialmente.
Seria ingénuo acreditar que os países e estruturas sociais são entidades imutáveis e que os movimentos de refugiados podem ser prevenidos através da simples preservação do status quo. Uma abordagem realista da prevenção e resolução dos problemas de refugiados deve reconhecer a necessidade e a inevitabilidade da mudança.(5) O progresso humano é inseparável do conflito, que o dicionário define como um "forte antagonismo" ou "confronto entre impulsos ou vontades contraditórias". A questão que maiores desafios coloca é a de saber se os conflitos poderão ser resolvidos sem violência e sem deslocações da população.
De acordo com um especialista em relações internacionais,
uma vez que as partes em conflito tenham adoptado posições
intransigentes, as oportunidades para a acção preventiva
podem ser muito limitadas, sobretudo em conflitos resultantes de antagonismos
étnicos, religiosos ou regionais. O registo histórico",
escreve o mesmo autor, "sugere que a gestão de conflitos sociais
é inerentemente difícil, quer seja ensaiada por Estados,
por impérios ou por organizações regionais ou mundiais".(6)
Tal como demonstra a recente experiência da ex-Jugoslávia
e do Ruanda, após ter sido disparada a primeira bala e assim que
tenham sido traçadas as linhas de batalha, as deslocações
de população não são apenas prováveis,
mas também se tornam uma parte da letal lógica da guerra.
Pôr os princípios em prática
Apesar da recente proliferação de conflitos e deslocações da população, em diferentes regiões do mundo, os tempos mudaram - em muitos sentidos para melhor - desde o final da Guerra Fria. Apesar de muitas diferenças nacionais, regionais e ideológicas continuarem por resolver, um novo nível de cooperação internacional tornou-se possível. As Nações Unidas e outras instituições puderam formular novas respostas para os problemas internacionais, apesar de, como aconteceu no caso de várias recentes operações de manutenção da paz, nem sempre terem conseguido alcançar os objectivos inicialmente afirmados. E uma abordagem alternativa, orientada para a solução do problema dos refugiados tem vindo a surgir, apesar da distância significativa que ainda há a percorrer entre o apoio retórico oferecido ao novo modelo e a forma como os seus princípios são, de facto, observados pelos Estados e por outros actores.
O desafio para os restantes anos do milénio deve, por isso, ser o de diminuir este fosso, de forma a assegurar que todas pessoas gozem do direito de viver em segurança no seu próprio país e comunidade, bem como o direito de procurar asilo noutro país quando estas condições deixem de prevalecer. Mas de que forma poderá este objectivo ser alcançado?
Muito tem sido escrito sobre as causas dos movimentos de refugiados, ignorando-se a maioria das vezes um aspecto simples: as deslocações em massa de populações são consequência de decisões tomadas por indivíduos e instituições poderosos, quer dentro, quer fora dos países que dão origem a refugiados. As guerras não se iniciam sem que sejam dadas ordens a um exército para agir. Algumas pessoas são mutiladas por minas porque outras têm um interesse directo na produção e venda deste tipo de armamento. A limpeza étnica apenas ocorre quando os líderes políticos e os seus apoiantes concluem ser do seu interesse a organização destas expulsões.
Por isso, em primeiro lugar, os indivíduos, instituições e sociedades devem ser convencidos da dimensão moral do problema de refugiados. Tal como parecem reconhecer todas as culturas e religiões, é errado que as pessoas tenham que abandonar o seu próprio país e comunidade para poderem sobreviver e é inaceitável que a estas vítimas da violência seja negada a oportunidade de procurar refúgio noutro lugar.
As ideias de solidariedade, de repartição de encargos e de responsabilização têm vindo a adquirir um carácter algo banalizado e burocrático, tendo-se diluído o seu significado pelas intermináveis repetições em discursos e resoluções oficiais. Mas a ideia em que se baseiam continua a ser inteiramente relevante. Enquanto seres humanos, todos temos uma responsabilidade na garantia do bem-estar de outros seres humanos e em assegurar que os custos destes esforços sejam distribuídos de forma equitativa. Consequentemente, devemos reafirmar o princípio de que os indivíduos e grupos não têm o direito de prosseguir os seus interesses pessoais de forma arbitrária, sem considerar as consequências que poderão decorrer para outras pessoas. Na comunidade internacional, tal como noutra comunidade baseada na primazia do Direito, os indivíduos ou entidades que violem princípios de comportamento acordados devem esperar ser responsabilizados pelo seus actos.
Ao mesmo tempo, deverá lembrar-se que os princípios devem ser sustentados não apenas pelo altruísmo ou pelo receio de punição, mas também por meros interesses pessoais. Por outras palavras, as pessoas têm em consideração os direitos e o bem-estar de outros indivíduos porque a sua sociedade deixaria de funcionar se assim não acontecesse. O mesmo princípio pode ser aplicado no plano internacional. Pondo de lado as considerações morais e humanitárias, podemos afirmar que a resolução dos problemas dos refugiados e a abordagem das causas da deslocação em massa de populações é do interesse dos Estados e outros actores porque os custos da inacção seriam certamente muito maiores.
O que poderia ter acontecido no Ruanda se os cerca de 2 biliões de dólares gastos na ajuda aos refugiados, durante as primeiras duas semanas da situação de emergência, tivessem sido destinados à manutenção da paz, à protecção dos direitos humanos e à promoção do desenvolvimento durante o período que antecedeu o êxodo? Fará realmente sentido para os países industrializados gastarem, por ano, aproximadamente 10 biliões de dólares nos seus sistemas de asilo, ao mesmo tempo que congelam as verbas atribuídas à assistência ao desenvolvimento e prosseguem políticas económicas que têm o efeito de obrigar as pessoas nos países menos desenvolvidos a migrarem para procurar trabalho? Se a comunidade internacional se interessa realmente pela resolução do problema de refugiados, então porque razão têm as instituições de direitos humanos das Nações Unidas sido o parente pobre da organização, com um orçamento e uma capacidade operacional reduzidos em relação às actividades de assistência humanitária e de manutenção da paz?
Olhando para o futuro, poderíamos perguntar quais serão
as consequências se o grau de desenvolvimento económico na
África Subsaariana continuar em estagnação ou em declínio?
Quando chegar o momento decisivo (o que já aconteceu a diferentes
níveis na Libéria, Ruanda, Serra Leoa e Somália) irá
a comunidade internacional ignorar o sofrimento humano e as deslocações
da população que venham a ocorrer? Ou, como parece mais provável,
será obrigada a gastar mais alguns biliões de dólares
em operações de assistência de duração
indeterminada e em esforços de manutenção da paz,
simplesmente para repor uma estabilidade temporária? O orçamento
anual da manutenção da paz das Nações Unidas
aumentou em 500% desde 1989, passando de 618 para 3.340 milhões
de dólares. Os gastos do ACNUR duplicaram durante o mesmo período,
passando de cerca de 570 milhões para 1.2 biliões de dólares
em 1994. Até que ponto irá o mundo reconhecer tanto em termos
humanos, como financeiros, os custos de não se investir no futuro?
Paz, democracia e desenvolvimento
O direito das pessoas permanecerem em segurança no seu próprio país depende, em última instância, do desenvolvimento, no sentido mais lato do termo. Não apenas do tipo de desenvolvimento que pode ser medido em termos de crescimento económico, mas o desenvolvimento que permite às pessoas realizarem o seu potencial humano, manterem o respeito por si próprias, desfrutarem de segurança física, responderem às suas necessidades materiais, participarem nas decisões que afectam as suas vidas e serem governadas de forma justa, num Estado de Direito.
Para se alcançarem estes objectivos chave deverá ser abordado um conjunto de actuais e potenciais questões, nos países de origem e ao nível internacional. Este investimento no futuro também irá exigir uma visão e um compromisso sustentados. Os problemas de refugiados são, frequentemente, o produto de tensões e de desigualdades profundamente enraizadas que devem ser abordadas através de estratégias de longo prazo.
Em primeiro lugar, a comunidade internacional deverá consagrar maiores esforços à tarefa da prevenção de conflitos. Nos últimos anos observou-se um aumento substancial das quantidades de financiamento atribuídos a operações de implementação de planos de paz e iniciativas de manutenção da paz que tiveram um papel importante na resolução de antigos problemas de refugiados, na contenção de novos conflitos e na distribuição da ajuda humanitária. Mas foram atribuídos recursos muito menores à prevenção de conflitos através de actividades como a "criação de instituições" ("institution building"), o desenvolvimento de acordos de partilha do poder, a promoção da cooperação política e económica ao nível regional ou esforços precoces de mediação e conciliação. Tal como tem demonstrado a experiência recente, uma "intervenção dura", através da força militar coloca inúmeros problemas em situações de conflito interno e social. O envio antecipado de pessoal humanitário e de observadores dos direitos humanos - uma estratégia descrita, pela Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados, como "intervenção suave" - poderá desempenhar um papel particularmente valioso nesta área.
Para manter a paz e a segurança no interior e entre os países, os governos terão também que se comprometer na redução dos gastos com o armamento, bem como no controlo mais eficaz da produção e exportação de armas ligeiras e minas e do desenvolvimento de novas armas mortíferas.
Do mesmo modo que as instituições financeiras internacionais recompensam os países que levam a cabo reformas económicas estruturais, aqueles que efectuem reduções de armamento e promovam medidas de longo prazo de construção da paz também devem ser incentivados. As instituições financeiras poderiam, elas próprias, ter um papel mais activo na prevenção e na resolução dos problemas de refugiados, sobretudo nas áreas da desmobilização e reintegração dos refugiados e na reconstrução pós-conflito.
Para prevenir o conflito armado e promover a reconciliação, devem também ser dados passos no sentido de identificar, nomear e, quando apropriado, julgar os responsáveis por crimes de guerra ou por graves violações dos direitos humanos. A não ser que a actual cultura de impunidade seja modificada, a violência e os movimentos de refugiados continuarão a ocorrer. Ao mesmo tempo, deveriam consagrar-se maiores recursos à promoção dos direitos humanos e à formação de pessoal em relação às leis da guerra, em particular em sociedades que emergem de longos períodos de governo autoritário.
Deverá reforçar-se o apoio e assistência aos países que respeitem princípios democráticos e padrões de direitos humanos. Os países com governos que respeitam e protegem os seus cidadãos são menos susceptíveis à violência do que aqueles que cometem ou não conseguem evitar este tipo de abusos. Os indivíduos e grupos devem ser protegidos do exercício arbitrário do poder estatal e os direitos das minorias devem ser salvaguardados através de garantias constitucionais e outros acordos de partilha do poder.
A criação de instituições ("instituition-building") é um requisito essencial da prevenção e resolução de conflitos, bem como da promoção da democracia. Também é uma tarefa que envolve um vasto conjunto de diferentes acções: o estabelecimento de um sistema judicial, jurídico e penal imparcial, o alargamento da educação básica e de programas de formação, a criação de uma sociedade civil activa, a participação das organizações não governamentais no processo de decisão política, bem como a promoção de elevados padrões de ética, no âmbito das estruturas públicas e privadas. Um pequeno investimento nestas áreas, por parte dos países mais ricos, poderá traduzir-se numa enorme recompensa em termos de "boa governação ("good governance") e prevenção de movimentos de refugiados.
A promoção do desenvolvimento, no aspecto mais convencional do termo, é também uma grande prioridade. A paz e o crescimento económico encontram-se interligadas. Sem segurança, mesmo as actividades produtivas mais básicas são prejudicadas. Sem o desenvolvimento é mais provável a ocorrência de tensões sociais que podem assumir uma forma violenta.
O desempenho económico de muitos países encontra-se actualmente limitado não apenas pela ausência de paz, mas também pela dificuldade que têm em concorrer num mercado internacional cada vez mais competitivo, bem como devido aos pesados encargos com a dívida externa. Para que os países menos desenvolvidos possam realizar o seu potencial de desenvolvimento e fugir ao ciclo vicioso da privação e da deslocação, devem ser tomadas medidas adicionais para reduzir este fardo.
Nos países com baixos rendimentos, os problemas da distribuição de terras, da degradação ambiental, do crescimento populacional e da segurança alimentar devem ser urgentemente enfrentados. Uma sociedade faminta é uma sociedade revoltada e pessoas revoltadas são frequentemente levadas a actividades destrutivas na sua luta pela sobrevivência.
Em última instância, o investimento privado e o comércio
podem desempenhar um papel mais importante do que a ajuda externa, na promoção
do crescimento económico. Mas os países devastados pela guerra
não conseguem, frequentemente, atrair capital estrangeiro e têm
dificuldade em reactivar os sectores produtivos da sua economia sem o apoio
externo. A assistência pública ao desenvolvimento é
indispensável para a criação de condições
em que o investimento e o comércio possam florescer. O actual declínio
dos níveis de assistência deve, por isso, ser invertido e
combinado com um esforço no sentido de assegurar que a ajuda seja,
adequadamente, dirigida a actividades que respondam às necessidades
imediatas e de prioridade humana, as quais também lançam
as bases para um crescimento de longo prazo sustentado.
Prevenção, Protecção, Soluções
Enquanto organização de refugiados da comunidade internacional, o ACNUR tem nos últimos anos procurado abordar o problema da deslocação humana através de uma tripla estratégia de preparação, prevenção e soluções: um grau de preparação que permite uma resposta rápida e eficaz a novas situações de emergência de refugiados, a oferta de protecção e assistência, de uma forma que ajude a prevenir ou a limitar essas deslocações, e um esforço concertado para encontrar soluções duradouras para os problemas dos refugiados, em particular (mas não exclusivamente) através do repatriamento voluntário e da reintegração. O desafio é agora o de determinar a forma como as abordagens inovadoras e as actividades descritas nos capítulos antecedentes poderão ser desenvolvidas e conjugadas, de forma a resolver as situações de refugiados existentes e prevenir a proliferação de novas crises de deslocação de populações.
Não será uma tarefa fácil. O problema dos refugiados encontra-se interrelacionado com muitas das questões urgentes com que o mundo se confronta actualmente: a protecção dos direitos humanos, a resolução de conflitos, a promoção do desenvolvimento económico e institucional, a conservação do meio ambiente e a gestão da migração internacional. Para se abordar o problema dos refugiados de forma efectiva e justa, será necessária uma abordagem integrada, que tenha simultânea e sistematicamente em conta estas diversas questões.
Resolver o problema dos refugiados é, assim, uma tarefa que deve
envolver todos os países, sociedades, comunidades e indivíduos,
trabalhando em conjunto, com base em objectivos e valores comuns. Quando
as Nações Unidas foram criadas em 1945, o fim declarado da
nova organização era o de reafirmar a convicção
do mundo nos "direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor
do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim
como das grandes e pequenas nações". Cinquenta anos
depois, a procura de soluções para o problema dos refugiados
deve orientar-se pelos mesmos princípios.