Movimentos em larga escala de refugiados e outros migrantes involuntários tornaram-se uma característica do mundo contemporâneo. Em poucos momentos da história recente um tão grande número de pessoas foi obrigado a sair do seu próprio país ou comunidade, em tantas regiões do mundo, para procurar segurança noutro lugar. Nunca antes a questão dos movimentos maciços da população alcançou uma posição tão importante na agenda das Nações Unidas e dos seus Estados membros. E, em nenhuma outra época, a situação das pessoas desenraizadas foi denunciada de forma tão expressiva e imediata, a uma audiência tão vasta.
O problema global dos refugiados confrontou o mundo com um amplo conjunto de desafios práticos e de dilemas éticos. De que forma poderão, por exemplo, as agências de ajuda humanitária responder, de forma mais eficaz, a movimentos repentinos e de grandes dimensões de pessoas deslocadas? Até que ponto se encontram os Estados obrigados a manter as suas fronteiras abertas quando confrontados com grandes influxos de refugiados? Poderá ser feita uma distinção significativa entre refugiados e outros tipos de migrantes? Será possível melhorar a segurança das pessoas deslocadas no seu próprio país? Que medidas poderão ser tomadas para prevenir a necessidade das pessoas se exilarem? E de que forma poderão os refugiados em todo o mundo ser auxiliados a retomarem uma vida mais estável e produtiva?
As turbulentas condições do mundo pós Guerra Fria forçaram a comunidade internacional a abordar estas questões com um reforçado sentido de urgência. As organizações humanitárias debatem-se com as crescentes exigências que lhes são feitas. Os governos em todos os continentes têm-se mostrado alarmados com a escalada do problema dos refugiados e estão cada vez mais relutantes em suportar os custos que sentem que o problema lhes impõe. Ao mesmo tempo, a crescente cobertura que os meios de comunicação social internacionais fazem de determinados conflitos e situações de emergência exerce uma pressão considerável sobre os Estados no sentido destes intervirem em relação a crises que originam um grande número de pessoas deslocadas e carenciadas.
A recente restruturação do equilíbrio global do poder obrigou e permitiu que a comunidade internacional considerasse o problema dos refugiados segundo uma perspectiva inteiramente nova. A relevância das abordagens tradicionais tem sido posta em questão e novas estratégias para se encontrarem soluções têm vindo a surgir. A prova desta nova orientação pode ser encontrada na resposta mundial a uma sucessão de importantes situações de emergência que ocorreram nos últimos cinco anos - por exemplo no Haiti, Iraque, Libéria, Ruanda, Somália e Ex-Jugoslávia, para não mencionar as crises que irromperam nos novos Estados independentes como a Arménia, Azerbeijão, Geórgia, Federação Russa e Tajiquistão.
Em quase todas estas situações, os Estados e outros membros da comunidade internacional dão consigo a responder às causas e consequências da deslocação de populações através de formas de acção inovadoras - a criação de uma "zona de segurança" no Norte do Iraque, o envio de observadores dos direitos humanos para o Ruanda, a intervenção de uma força de manutenção da paz regional na Libéria, a utilização de tropas das Nações Unidas para proteger o envio da assistência humanitária na Bósnia-Herzegovina, a introdução de "locais de refúgio seguro regionais" ("regional safe heavens") para os requerentes de asilo haitianos e a criação de um tribunal para julgar os crimes de guerra cometidos na Ex-Jugoslávia e no Ruanda, para referir apenas alguns dos exemplos citados neste livro.
Não se pode dizer que estas inovações derivem de
uma estratégia internacional claramente definida. Muitas das iniciativas
que foram tomadas durante os últimos cinco anos têm sido de
natureza experimental e têm sido formuladas de forma apressada para
responder a necessidades urgentes e inesperadas. Inevitavelmente, algumas
demonstraram ser mais eficazes e mais justas do que outras, ao mesmo tempo
que abordagens que há dois ou três anos pareciam ganhar terreno
- a intervenção de forças militares mandatadas pelas
Nações Unidas em zonas de guerra, por exemplo - estão
já a ser reconsideradas.
No turbulento contexto do mundo do pós Guerra Fria, as Nações Unidas, os seus Estados membros e agências especializadas têm dificuldade em desenvolver políticas coerentes e consistentes em relação aos movimentos maciços de população. Por isso, não surpreende que nos últimos anos se tenha observado um conjunto de acesas controvérsias, quer dentro, quer entre as instituições governamentais, internacionais e não governamentais que se ocupam dos problemas dos refugiados.
Os recentes acontecimentos no Ruanda, por exemplo, geraram uma discussão acesa sobre a legitimidade de se fornecer assistência a populações de refugiados que integram indivíduos implicados em graves violações dos direitos humanos. A operação das Nações Unidas na Somália levantou uma série de questões importantes quanto à relação entre a assistência humanitária e a utilização da força militar. A guerra na Bósnia-Herzegovina deu origem a alguns difíceis dilemas relacionados com a evacuação de civis de áreas que se encontram sob a ameaça de limpeza étnica e, os esforços da comunidade internacional para responsabilizar o governo iraquiano pela invasão do Kuwait, levantaram sérias questões acerca da imposição de sanções com um impacto directo sobre o bem-estar de cidadãos comuns.
Partindo da experiência destas e de outras operações humanitárias recentes, os capítulos que se seguem procuram identificar e analisar alguns dos problemas da deslocação maciça de populações. É prestada uma atenção importante à evolução do papel do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, responsável pela protecção dos refugiados e pela promoção de soluções duradouras para a sua situação.
Este livro sugere que podem distinguir-se várias tendências diferentes - e de alguma forma contraditórias - na resposta da comunidade internacional ao problema dos refugiados.
Em primeiro lugar, existe um reconhecimento crescente da necessidade de se abordar a questão da migração involuntária de uma forma mais pró-activa. Desenvolvem-se actualmente maiores esforços de prevenção de movimentos de refugiados antes que estes ocorram, de contenção de conflitos armados e dos movimentos populacionais que provocam e de criação de condições que permitam o regresso das pessoas deslocadas às suas casas.
Em segundo lugar, para alcançar estes objectivos, um conjunto mais alargado de actores têm vindo envolver-se na procura de soluções para os problemas dos refugiados. Para além do ACNUR e dos seus parceiros tradicionais, o problema da deslocação de populações tem atraído a atenção dos órgãos políticos das Nações Unidas e de organizações de segurança como a NATO e OSCE, de instituições financeiras como o Banco Mundial e de organizações regionais como a CEI e a OUA. O mundo reconheceu que os problemas dos refugiados são demasiado complexos para serem resolvidos unicamente pelas organizações de refugiados.
Em terceiro lugar, existe uma nova consciência da necessidade de se enfrentar a questão dos refugiados e outros problemas transnacionais de uma forma integrada. Embora tardiamente, a comunidade internacional concluiu que apenas será possível encontrar soluções duradouras para o problema da deslocação de populações se forem desenvolvidos esforços concertados para proteger os direitos humanos, manter a paz entre e no interior dos países, promover um desenvolvimento sustentado e gerir a migração internacional. Embora os capítulos seguintes examinem cada um destes desafios separadamente, estas tarefas encontram-se, obviamente, interligadas. Tal como foi observado em países tão diferentes como o Afeganistão, Angola e Azerbeijão, problemas como o conflito armado, a repressão política, a violência social, a pobreza, a desigualdade económica e a migração involuntária coexistem invariavelmente e reforçam-se mutuamente.
Em quarto lugar, tal como fazem notar os capítulos seguintes,
a procura de novas soluções para o problema da deslocação
das populações tem tido uma série de manifestações
negativas, nomeadamente a diminuição do compromisso perante
o princípio do asilo e a crescente tendência para se ignorarem
princípios de protecção e normas humanitárias
há muito estabelecidos. Em
vez de oferecer refúgio a pessoas cuja segurança se encontra
em risco, cada vez mais, os países tomam medidas no sentido de obstruir
a chegada de requerentes de asilo, conter as pessoas deslocadas no interior
dos seus próprios países e reenviar os refugiados para o
seu país de origem tão rapidamente quanto possível,
mesmo que as condições se mantenham inseguras e que as populações
em questão não tenham manifestado o desejo de serem repatriadas.
A situação dos refugiados no mundo em 1995 é, por isso, tanto de perigo, como de oportunidade. O perigo decorre do facto de um crescente número de pessoas serem desenraizadas pela fragmentação social e política que tem caracterizado o período pós Guerra Fria e pelo facto dos países demonstrarem falta de vontade ou capacidade para oferecer a estas populações a protecção de que necessitam. O facto dos governos se encontrarem expostos à pressão dos meios de comunicação social e da opinião pública poderá obrigá-los a prestar auxílio de emergência, mas tal como demonstra a recente experiência nos Balcãs e na África Central existe também o risco de que a assistência humanitária se transforme num substituto de acções decisivas no sentido de enfrentar as causas dos conflitos que dão origem a refugiados. Ao mesmo tempo, à medida que as principais potências se voltam para dentro, preocupadas com questões internas e com os seus interesses nacionais, existe o perigo claro das Nações Unidas serem utilizadas de modo selectivo e de lhes ser pedido que emprestem a sua bandeira a operações concebidas para tratar de assuntos do interesse de países e alianças específicos.
As rápidas alterações que estão a ter lugar no sistema internacional também apresentaram ao mundo uma oportunidade de se abordarem, de uma forma mais construtiva, as causas e consequências dos movimentos maciços da população. As atitudes de rivalidade das últimas décadas foram, de alguma forma, substituídas por uma maior vontade de cooperar. Formas de governo repressivas foram, em grande medida, desacreditadas e, em várias regiões do mundo, cederam lugar a estruturas políticas mais democráticas e pluralistas. Existe um reconhecimento crescente da necessidade de uma "boa governação" ("good governance") no plano nacional e internacional e uma maior consciência dos perigos da proliferação de armas ligeiras, minas e outras armas de guerra.
Por isso, cinquenta anos após a sua criação, as Nações Unidas e os seus Estados membros ainda são confrontadas com o desafio identificado na Carta da organização: "preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra". A procura de soluções para os problemas dos refugiados - e para as situações que lhes dão origem - é uma parte essencial desta tarefa. As pessoas deslocadas são vítimas dos males que afectam a nossa era - governos que se recusam a respeitar os direitos humanos dos seus cidadãos, facções armadas extorcionárias que instrumentalizam objectivos políticos para camuflar o seu desejo, pessoal ou colectivo, de grandeza, grupos sociais e religiosos que não são capazes de tolerar opiniões e estilos de vida alternativos, para não referir tendências profundamente enraizadas como a crescente desigualdade existente quer no interior quer entre as nações, o rápido crescimento da população mundial e o esgotamento dos recursos naturais do planeta.
A experiência tem demonstrado que as populações deslocadas podem trazer benefícios às regiões onde se instalam. Podem atrair o auxílio internacional para uma região há muito privada da assistência ao desenvolvimento. Nalgumas situações os movimentos de refugiados trouxeram novas aptidões e recursos humanos para a comunidade de acolhimento, potenciando dessa forma o crescimento da economia local. E, em todo o mundo, indivíduos e comunidades exilados têm contribuído enormemente para a diversidade cultural e para a vitalidade intelectual dos seus países adoptivos.
Ao mesmo tempo, seria ingénuo ignorar as consequências negativas dos movimentos populacionais involuntários. Para os indivíduos em questão, tornar-se refugiado é, por definição, uma experiência dolorosa. Ninguém deveria ser obrigado a abandonar o seu lar e a fugir do seu país para se sentir seguro. Para os países e comunidades envolvidos, os movimentos maciços de populações também podem criar um conjunto de problemas importante. Quando um grande número de pessoas deslocadas e carenciadas chega a uma região, quase inevitavelmente exerce uma forte pressão sobre os escassos recursos locais existentes, sobretudo em países com baixos rendimentos, onde se encontra a vasta maioria dos refugiados do mundo. Ao mesmo tempo, os movimentos de refugiados podem dar origem a tensões sociais, reforçar divisões políticas, quer entre, quer no interior dos próprios Estados e acrescentar novos elementos de instabilidade a situações já de si voláteis.
A tarefa de prevenir e de resolver os problemas dos refugiados - e as forças que os provocam - não é, por isso, simplesmente uma questão de preocupação humanitária. Também deve fazer parte integrante do esforço alargado no sentido de estabelecer um mundo mais pacífico, mais próspero e mais seguro.